A ditadura militar deixou rastros físicos na malha urbana de Curitiba, mas é difícil diferenciá-los do resto da cidade no dia a dia. Prédios e casas que eram locais de tortura para prisioneiros políticos são demolidos, reformados e reutilizados sem que haja distinção para marcar o local como histórico. O conceito de lugares de memória dita que locais físicos podem servir como recipiente para a recordação de eventos históricos e ocorrências importantes no passado coletivo de um grupo. Na capital paranaense, existe uma série de lugares de memória ligados à ditadura que não fazem questão de se colocar como tal, preferindo se camuflar como qualquer outra construção da cidade.
“Existe uma infinidade de episódios relacionados à ditadura que não são lembrados”, diz o historiador José Santos de Abreu, 48. “Nós temos um passado que não foi exorcizado; devidamente recuperado, relembrado pelas pessoas.” Durante sua carreira, Santos de Abreu deu enfoque a uma ocorrência central para entender a Ditadura Militar no Paraná.
De 17 a 18 de março de 1978, em Curitiba, 11 membros de centros de ensino alternativo — as pré-escolas Oca e a Oficina — foram presos pela Polícia Federal. O caso é conhecido como Operação Pequeno Príncipe e o objetivo oficial era de combate à doutrinação política. A Oca era situada no Estádio Durival Britto e Silva, casa do antigo Colorado, hoje Paraná Clube, no bairro Jardim Botânico. A Oficina teve mais de uma sede, mas a de 1978 ficava na Alameda Dr. Carlos de Carvalho, onde hoje existe um restaurante da franquia Au-Au.
“Nós temos um passado que não foi exorcizado; devidamente recuperado, relembrado pelas pessoas”
José Santos de Abreu, historiador.
“Abaixo do Shopping Curitiba há uma quadra. Tem o Hotel Ibis, tem um prédio de apartamentos — naquela quadra ali ficava uma unidade do exército. A partir de 1975 funcionava ali o DOI-CODI”, diz José Santos de Abreu. O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) foi um órgão do exército encarregado da inteligência e repressão do governo brasileiro durante a ditadura. Esta foi a última unidade das 10 do DOI-CODI construída no Brasil.
A instalação foi demolida sem deixar resquício. “O DOI-CODI atuava na clandestinidade. Eles não vinham com um mandado para prender a pessoa, não. Eles sequestravam e torturavam. Se eles achassem que valia a pena legalizar essa prisão então essa pessoa sobrevivia. Se eles achassem que não valia a pena, eles já tinham colhido a informação, eles matavam e desapareciam com o corpo.” Como a fachada era de uma clínica veterinária, o local ganhou o nome de Clínica Marumbi.
Clínica Marumbi
O local exato, como noticiado pelo Brasil de Fato, é notório por ser difícil de localizar exatamente. As vítimas levadas para a Clínica eram geralmente vendadas quando estavam perto do local. É o caso de Antônio Narciso Pires de Oliveira, militante de direitos humanos, 75. Originalmente, Narciso era da resistência de Apucarana. “Eram cerca de 8 garotos, todos na faixa de 16 a 20 anos. Fomos todos presos e alguns torturados. Dois foram assassinados pela ditadura, o Antônio dos Três Reis de Oliveira e o José Idésio Brianezi”, diz Narciso.
“Em 1975 fui sequestrado e torturado em um quartel do exército em Apucarana e de lá me trouxeram para Curitiba com os olhos vendados e fui levado [para a Clínica Marumbi]. Lá eu fui torturado também. Ali entre a Doutor Pedrosa e a Visconde de Guarapuava. Do lado da Rua da Cidadania hoje, também funcionava o quartel da polícia do exército, e de onde hoje é o Shopping Curitiba.” Narciso conta que todos que operavam dentro dentro da clínica usavam nomes falsos, mas reconheceram um dos oficiais: Major Zuiderzee de Nascimento Lins, que era comandante do quartel do exército em Apucarana.
Comissão Nacional da Verdade
No Relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado em 2014, consta:
“Seguindo o padrão de outros DOI-CODI, o órgão no Paraná atuava com a colaboração do DOPS/PR e da Secretaria de Segurança Pública do Paraná (SSP/PR), que envolvia operações conjuntas, fornecimento de documentação falsa e uso de dependências policiais para interrogatório. Em julho de 1975, o tenente-coronel Zuiderzee Nascimento Lins assumiu o comando do DOI-CODI/5ª RM. Nesse mesmo ano, sob seu comando, o DOI-CODI executou, em parceria com o DOPS/PR a Operação Marumbi, uma grande investida contra militantes e simpatizantes do PCB no Paraná, na qual foram presas mais de 100 pessoas, com 65 indiciados. Em Santa Catarina, com o mesmo propósito, foi desfechada a Operação Barriga Verde”, o relatório segue: “Testemunhas apontam um local clandestino, chamado “Clínica Marumbi”, utilizado por policiais e oficiais do DOI-CODI para sessões de interrogatório e tortura. No âmbito da Operação Radar, contra o PCB, testemunhas apontaram que oficiais e agentes do DOI-CODI do II Exército (São Paulo) participaram de ações da Operação Marumbi. O tenente-coronel Zuiderzee Nascimento Lins deixou o comando do DOI-CODI/5ª RM em 5 de janeiro de 1978, para assumir função no SNI.” O Serviço Nacional de Informações (SNI) foi o órgão estatal de espionagem de serviço à ditadura.
“Não sei quanto tempo exatamente passei lá e fui levado para a DOPS,” diz Narciso. O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) foi um órgão governamental com o intuito de aplicar a ordem militar no país. O antigo prédio da Dops em Curitiba fica na Rua João Negrão, número 773, no Centro.

Outra personagem importante e que participou de uma sessão da Comissão Nacional da Verdade foi a jornalista e ativista ambiental curitibana Teresa Urban. Presa e vítima de tortura na década de 70, Urban precisou se exilar no Chile por dois anos. Quando retornou ao Brasil, iniciou sua jornada na luta pela preservação ambiental até seu falecimento aos 67 anos.
Mapa da repressão e da resistência
No mapa interativo abaixo estão demarcados os principais núcleos da atuação militar em Curitiba durante os anos da repressão, assim como alguns centros de resistência. Cada ponto apresenta uma breve descrição e fotos dos locais. as informações de cada espaço foram obtidas com base no trabalho de Mestrado em História pela UFPR, do professor Luiz Gabriel da Silva.











Reportagem: Fernanda Gomes, Francielle Lacerda, João Marcelo Simões, Leticia Negrello, Maria Flávia Ferreira e Matheus Neme.
Texto: João Marcelo Simões.