qui 21 nov 2024
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Portadoras de endometriose buscam alternativas para gestar

Doença que atinge uma a cada dez mulheres pode tornar mais difícil a jornada de quem sonha com a maternidade

“Pra toda mulher com endometriose [o maior medo] é o do aborto”, desabafa a enfermeira Silvia Rios (42), que sempre teve desejo de ser mãe. Após três gravidezes interrompidas, foi diagnosticada com adenomiose e endometriose profunda, considerando-se infértil. Atualmente é mãe de três filhos, dois adotivos e um biológico. Silvia faz parte das sete milhões de brasileiras que são portadoras de endometriose.

Segundo o Ministério da Saúde, uma a cada dez mulheres têm a doença inflamatória, que acompanha as portadoras em todas as menstruações até a menopausa. A cada ciclo menstrual, o útero revestido pelo endométrio se prepara para receber um óvulo fertilizado. Quando isso não acontece, o tecido é expelido e a menstruação sucede. Mas nas pessoas com endometriose, esse tecido pode ir para os ovários, cavidade abdominal ou outros órgãos. Ao acumular-se fora do útero, causa, entre outros, inflamações, sangramentos, cistos e cicatrizes. 

Conviver com a endometriose é uma batalha: a dor persistente, ao longo da vida, torna-se uma dor crônica. Em alguns casos, tarefas do dia a dia como pentear o cabelo ou andar tornam-se um desafio. Apesar disso, a doença pode passar despercebida – a falta de informação somada à negligência médica leva pacientes a julgarem normais as fortes dores, dificultando a identificação. 

Os sintomas mais comuns são cólicas menstruais e fluxo intenso, dor pélvica ou abdominal durante a relação sexual e dor e sangramentos intestinais ou urinários durante a menstruação / Imagem: Nayara Almeida – Jornal Comunicação UFPR

Desvendando as dores

O diagnóstico da endometriose exige uma junção do exame físico, o qual o médico analisa o caso pelos sintomas, aos exames de imagem, como ultrassom e ressonância magnética específicos. É comum os sinais estarem presentes desde a primeira menstruação, mas há pessoas que são assintomáticas ou que só terão os indícios mais tardiamente.

Conforme estudos da UpToDate de 2023, a doença se manifesta predominantemente entre os 25 a 35 anos. “Em média, 10% das mulheres têm endometriose. Muitas delas demoram anos para conseguirem um diagnóstico. Algumas têm sintomas, outras não, e isso acaba atrasando um pouco a identificação”, explica a médica ginecologista Larissa Cavalli (31), pós graduada em reprodução assistida. 

“Pesquisei e apareceu tanta informação que a minha mente ferveu. Estava ali tudo o que eu sentia desde os onze anos e diziam que não era nada”

Além do diagnóstico ser realizado tardiamente, existe certa dificuldade em encontrar um profissional que não negligencie a dor do paciente. É o caso da Flávia Marcelino (50), fundadora e presidente da ONG EndoMulheres, que após menstruar pela primeira vez aos 11 anos, ouviu de médicos que seus sintomas eram “frescura”, como ela relata:

Portadora de endometriose, Flávia Marcelino expõe a experiência de dores, sangramentos e desmaios desde os 11 anos, depois da primeira menstruação

Aos 41 anos, ouviu sobre endometriose pela primeira vez. “É inacreditável uma doença feminina que a mulher nunca ouviu falar e muitos médicos nem falam”, confessa. Mesmo visitando o médico regularmente, chegou a ser diagnosticada erroneamente com ovário policístico. “Existia a curiosidade de saber o que era essa doença. Pesquisei e apareceu tanta informação que a minha mente ferveu. Estava ali tudo o que eu sentia desde os onze anos e diziam que não era nada”.

Essa foi uma das motivações para Flávia criar a Associação EndoMulheres Baixada Santista e Região. Além de disseminar informação sobre a endometriose, a ONG auxilia na busca por médicos, exames e assistências para as dores, como aulas de fisioterapia pélvica.

Flávia Marcelino ouviu sobre endometriose 30 anos depois de seus primeiros sintomas, o que a motivou a criar a ONG EndoMulheres / Imagem: Instagram

Infertilidade

Além da doença causar desequilíbrios hormonais que afetam a ovulação, o tecido do endométrio na região pélvica pode interferir na fertilização e implantação do óvulo no útero onde o bebê se desenvolve, alterando a função dos aparelhos reprodutores. Por isso, a endometriose torna para muitas mulheres ainda mais difícil o processo de engravidar e gestar. De acordo com a Sociedade Brasileira de Endometriose, cerca de 30% dos casos levam à infertilidade. Apesar disso, existem alternativas para quem deseja gestar, como:

  • Tratamento para fertilidade através de terapia medicamentosa ou hormonais, que regulam o ciclo menstrual e reduzem dor e inflamação;
  • Fertilização in vitro (FIV), em que os óvulos são retirados e fertilizados para serem implantados no útero;
  • Inseminação intrauterina (IIU), em que os espermatozóides são transferidos diretamente no útero para uma fecundação natural nas tubas uterinas;
  • Cirurgia para remover o tecido ou cistos, aumentando as chances da gravidez ocorrer naturalmente.

Silvia Rios é enfermeira e uma das milhões de pacientes que sonhavam com a maternidade. Foi diagnosticada em 2017, depois de desmaiar de dor e precisar ser levada a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Dois anos antes, já sabendo que tinha dificuldade para engravidar, realizou três fertilizações in vitro e sofreu três abortos. “Eu já era mãe adotiva de um menino de quatro anos na época em que descobri a doença e estava em processo de adoção de um segundo. Eu havia desistido de engravidar porque a adenomiose e endometriose profunda estava enraizada praticamente em todos os meus órgãos. Depois do diagnóstico entendi que era estéril”, revela.

Dois anos após descobrir a endometriose, Silvia Rios engravidou de sua filha biológica / Imagem: Arquivo pessoal

Após a descoberta, precisou realizar uma cirurgia para retirar tumores do intestino e focos da doença da bexiga, rim e do aparelho reprodutor. Contra todas as expectativas, em 2019, já com seus dois filhos adotivos, foi surpreendida com uma gravidez natural.

Independente da via, há diversas possibilidades para a realização do sonho da maternidade. Seja mãe biológica, adotiva, via FIV ou madrasta. A enfermeira conta sobre o processo de adoção de seu primeiro filho: “Eu tinha acabado de perder gêmeos de uma fertilização in vitro, tive um aborto no mês de maio e conheci o meu filho no mês de julho. Eu já tinha o desejo de adotar, dedicar todo o meu amor àquela criança uma vez que eu não tinha conseguido gerar”.

Silvia não é a única mulher com endometriose que conseguiu gestar. Depois de uma vida inteira achando que nunca conseguiria ser mãe, Flávia Marcelino também descobriu uma gravidez. Mas o desafio não parou por aí, já que gestações em pessoas com endometriose costumam ser de risco. No caso de Flávia, por exemplo, foi necessário ficar de repouso durante a gestação, uma vez que os tecidos presentes em seus ovários poderiam causar sangramentos e até aborto. 

A endometriose afeta até quem não sonha com a maternidade, como é o caso da estudante Isadora Barrios, de 22 anos. Após descobrir a doença através de uma matéria na internet, desenvolveu medo da gravidez. “Quando eu descobri, conversei com a mãe de uma amiga que também tinha endometriose e histórico de abortos. O médico dela informou que ela teria problemas para ter filhos, teria gravidez de risco. Como eu entendi isso muito jovem, afetou o meu desejo de ser mãe. Eu não tenho mais tanto interesse porque eu tenho muito medo de ser um processo doloroso”, revela.

Além da dor física

 “Eu tive meu físico muito afetado durante a descoberta da doença. Engordei trinta quilos, minha pele manchou, desenvolvi melasma”, confessa Silvia Rios. Além das dores e dificuldades físicas, a endometriose pode ter consequências psicológicas. “Os hormônios mexeram com o meu emocional porque eu me sentia uma pessoa incapaz, inválida. Porque eu nunca conseguia ser mulher cem por cento para o meu marido. Embora eu não tivesse dor nas relações sexuais, as dores diárias atrapalhavam desde relações sexuais até sair para comer uma pizza. Eu não tinha prazer nisso, mexeu muito com a minha autoestima”, desabafa.

A pressão emocional acompanhou o processo físico antes, durante e posterior a gravidez. “Eu me sentia inferior às outras mulheres por não poder gerar. Mesmo que eu já fosse mãe, eu não conseguia gerar e eu tinha o desejo de amamentar, de ver a minha barriga crescer, de ir pra um ultrassom. Todas essas coisas faziam falta”, complementa a mãe.

Cerca de 7% das mulheres não têm sintomas da endometriose, o que dificulta o diagnóstico / Imagem: Nayara Almeida – Jornal Comunicação UFPR

“Vivemos em uma sociedade que historicamente coloca a maternidade como um ideal feminino. Há uma exigência de que a mulher seja mãe”, explica a psicóloga Ana Alzira Viggiano, especialista em pacientes com endometriose. Para as pessoas que querem ser mães e enfrentam dificuldade em engravidar, o processo emocional é muito mais doloroso.

“Os hormônios mexeram com o meu emocional porque eu me sentia uma pessoa incapaz, inválida”

É preciso lidar com desgastes físicos e psicológicos, como cirurgias, lutos de perdas gestacionais, investimento financeiro, tentativas frustradas e falta de acesso aos tratamentos necessários. “Na clínica psicológica recebemos as dores emocionais de mães que se sentem culpadas, […] de mulheres que tiveram os seus órgãos reprodutivos mutilados e não poderão realizar o sonho da maternidade, dúvidas ou repulsa em relação à adoção, e de mulheres que têm dúvidas sobre o desejo de ser mãe”.

O tratamento da endometriose precisa ir além do físico. O acompanhamento terapêutico especializado é muito importante e necessário, pois o espaço psicoterapêutico acolhe e ajuda os pacientes a lidar com seus desafios. Para a psicóloga, pensar sobre a maternidade sem estigmas, imposições ou culpas é imprescindível.

Edição por Raíssa Trevisan

Nayara Almeida
Estudante de Jornalismo da UFPR.
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Nayara Almeida
Estudante de Jornalismo da UFPR.
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