Passados oito anos entre a Copa de 2014, sediada no Brasil, e a Copa de 2022, no Catar, muita coisa mudou na forma de projeção, construção e uso — vide os elefantes brancos, grandes investimentos públicos sem retorno social aparente — dos estádios de futebol. Sustentabilidade, inovação e reutilização são algumas das palavras que norteiam a arquitetura e a engenharia das obras na Copa do Mundo do Catar e, ao mesmo tempo, sustentam contradições: é possível desenvolvimento sustentável em um país que frequentemente viola os direitos humanos e democráticos?
Para Natália Morari Ochôa, mestra em Estudos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), as relações de trabalho no Catar são conturbadas por conta do Kafala System, um sistema de tutela e monitoramento de trabalhadores vigente em alguns países do Oriente Médio e abolido no Catar em 2020, em decorrência da Copa do Mundo. De acordo com a pesquisadora, no Catar, esse sistema atingiu especialmente os trabalhadores da área de construção civil e seus reflexos ainda contribuem para a precarização do trabalho no país.
Segundo dados da Human Rights Watch, em 2012, dentre as violações de direitos humanos relacionadas ao trabalho no Catar estavam o confisco de documentos pessoais, as jornadas de trabalho exaustivas e a dedução salarial desproporcional, que fazia com que esses trabalhadores chegassem a receber menos de sete dólares por dia. Em 2022, segundo a Anistia Internacional, mesmo com a abolição do Kafala System não houve grandes mudanças no contexto do trabalho do país. As jornadas chegavam a ultrapassar 12 horas, não havia dias de descanso, as deduções desproporcionais não davam trégua e os alojamentos que abrigavam esses trabalhadores se apresentavam em péssimas condições de higiene e ventilação.
O mundial do Catar caminha para se tornar um dos mais recheadas de intervenções e manifestações políticas da história frente às notícias de violência contra trabalhadores, migrantes, mulheres e minorias sexuais. Esses aspectos não podem ser ignorados e, de certa forma, fazem parte da engenharia catari, que dá título à matéria.
Arquitetura e sustentabilidade
Os projetos dos estádios da Copa do Catar bebem da fonte da arquitetura high-tech, movimento que se consolida a partir dos anos 1990 e se caracteriza pela utilização de alta tecnologia construtiva em um processo industrializado para edificação de grandes projetos em estrutura metálica. Essa alta tecnologia permite, por exemplo, que as coberturas das arenas revestidas em membrana translúcida, ou seja, que controlam a entrada de raios solares, possibilitem a iluminação e a climatização artificial dos estádios.
Para a Copa do Catar, uma das grandes preocupações da organização do evento é o clima do país, que pode ser extremamente quente e seco em determinadas épocas do ano. Entre abril e agosto, o clima no Catar é abafado, o que impediu o torneio de acontecer nos tradicionais meses de junho e julho. Pela primeira vez na história a Copa acontece entre novembro e dezembro, outono no hemisfério norte. Para a semana de abertura, a temperatura máxima não deve ultrapassar os 30°C e a umidade relativa do ar se mantém em média entre 60% e 70%.
Além disso, também existem nos estádios grandes esquemas de reaproveitamento de água, de ventilação e preocupação com a geração excessiva de carbono, no entanto, não era possível que essas não fossem figuras centrais para a Copa de 2022. Segundo o doutor em Planejamento Urbano e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Orlando Ribeiro, não é novidade a grande preocupação com a sustentabilidade nas obras do Catar. De acordo com o professor, esses estádios são projetos de grandes empresas de arquitetura e engenharia internacionais que, dada a visibilidade do evento, são colocadas em uma espécie de vitrine para o restante do mundo, logo, precisam estar alinhadas aos debates políticos e ecológicos da época. Prova disso é a revogação do já citado Kafala System, sob pressão de grupos de ativistas de direitos humanos, organizações internacionais e até mesmo dos patrocinadores do evento.
Nanotecnologia
Para Orlando Ribeiro, pelo menos na área da arquitetura, que envolve o desenho, a montagem e a acomodação das edificações, não houve grandes avanços na Copa de 2022 quando comparada às últimas edições. No entanto, graças à nanotecnologia, a engenharia é, de fato, outra. Para o professor, “a nanotecnologia vem cada vez mais invadindo os materiais de construção, ora deixando mais leves os elementos estruturais, ora conferindo a capacidade deles serem autolimpantes”. Alguns especialistas apontam que a chegada da nanotecnologia na construção civil representa a “segunda revolução do concreto“, sendo a primeira a descoberta do concreto, patenteado em 1892, na Suíça.
A nanotecnologia, para a engenharia, é a possibilidade de alterar os estados naturais de uma determinada molécula ou átomo, criando materiais mais qualificados para as construções em relação aos utilizados atualmente. O dióxido de titânio em nanopartículas, por exemplo, por conta do seu caráter anti-incrustante e hidrofóbico, consegue desintegrar a sujeira orgânica de uma superfície a partir do contato com a água ou luz do sol, fazendo com que a estrutura se limpe sem a necessidade de esforço humano.
Brasil, Catar e os elefantes brancos
Orlando Ribeiro ressalta que uma das principais diferenças entre os estádios da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, e a Copa de 2022, no Catar, é que enquanto o Brasil se esforçava em corresponder minimamente aos padrões da Fifa, as obras no Catar superam esses parâmetros, e muito. Lá, a ideia é que o usuário tenha uma experiência espacial extraordinária, conferida por um arrojo tecnológico de ponta. Como no Brasil o sistema construtivo é predominantemente o concreto armado, não há nos estádios daqui aparatos complexos envolvendo características tecnológicas, como membranas translúcidas, climatização artificial e a nanotecnologia, até porque, aqui, o orçamento foi menor. Enquanto o Catar lança mão de aproximadamente US$ 200 bilhões para a Copa, no Brasil, foram investidos apenas US$ 10 bilhões, na cotação da época.
Uma outra questão é a utilização desses estádios. O Estádio 974, construído para a Copa no Catar, é o primeiro desmontável do mundo. Parece erguido em peças de Lego, mas são, na verdade, 974 containers de transporte marítimo coloridos, e é daí que vem o nome do estádio, que também é o código telefônico internacional do país. O estádio — que, inclusive, lembra o interior do Teatro Oficina, projetado pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi — é uma homenagem da península ao mar e aos navios cargueiros, os quais a economia catari é totalmente dependente.
Outros estádios também seguem uma lógica parecida, como o Al Bayt, que recebe a partida inaugural da Copa entre Catar e Equador, neste domingo (20). Com o final do campeonato, os assentos superiores do estádio serão removidos e doados a países emergentes onde essas instalações façam maior diferença. Isso acontece porque o Catar não é um país com uma tradição futebolística marcante.
No Brasil, parte da população julga que estão entre o saldo da Copa de 2014 alguns casos emblemáticos de elefantes brancos, como a Arena Pantanal, em Cuiabá, o Mané Garrincha, em Brasília e o caso da Arena da Baixada, do Athlético Paranaense, onde foi aplicado dinheiro público em um estádio privado, situação inédita e que permanece mal explicada.
Por outro lado, para Aguinaldo de Melo Silveira, de 51 anos, autônomo e morador de Cuiabá, apesar da cidade não esbanjar um histórico de grandes equipes nas principais divisões do Campeonato Brasileiro, a comunidade cuiabana sempre se envolveu de maneira intensa com o futebol. Há registros de casa cheia no Verdão, hoje Arena Pantanal, com as torcidas do Operário, Mixto e Dom Bosco, clubes que, infelizmente, acompanharam o processo de empobrecimento do futebol mato-grossense a partir da década de 1990.
Para Aguinaldo, a avaliação de que a ausência de grandes clubes do futebol brasileiros em Cuiabá leva a obra ao status de elefante branco é um erro, já que ela apresenta uma capacidade multiuso — hoje, funciona uma escola estadual dentro do estádio — e, além disso, a Arena é uma questão de orgulho e paixão histórica para a população cuiabana.