18 de julho de 1975, oito horas da manhã. A notícia já se espalhava pelo norte do Paraná e, em poucas horas, chegou a Curitiba: as lavouras de café estavam perdidas. Ao amanhecer daquele dia, milhares de trabalhadores encontraram um cenário desolador. Onde no dia anterior haviam campos verdes e promissores de café, conhecido como motor da economia paranaense, só restavam folhas queimadas e galhos escurecidos pelo frio extremo.

As consequências foram tão grandes que mudaram permanentemente o ciclo de culturas do Paraná. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na safra de 1975, com a colheita encerrada antes do fatídico dia 18 de julho, o Paraná colheu 10,2 milhões de sacas de café (48% da produção nacional). Na temporada seguinte, a produção despencou para 3,8 mil sacas, fazendo com que a participação estadual na produção brasileira representasse apenas 0,1%.

O colapso foi causado por uma geada atípica e devastadora — conhecida como geada negra. Diferentemente de uma geada branca, muito presente nos invernos do sul do Brasil, a geada negra trata-se de um fenômeno climático severo formado pela combinação do frio extremo e ar seco. Tais condições provocam o rápido congelamento da seiva da planta, causando danos internos e a morte do tecido vegetal. Ou seja, a planta é afetada desde a folha até a sua raiz, o que exige o replantio completo de todas as safras atingidas.

O fim de um era

A destruição, que segundo a Secretaria de Estado da Agricultura e do Abastecimento do Paraná (Seab) atingiu 1,8 milhão de hectares de plantações e cerca de 60% das safras de café do estado, não representou apenas uma perda agrícola, mas o desmantelamento de um sistema social. 

De acordo com o jornalista Adriano Justino, diretor do documentário “Geada Negra” (2008), durante a economia cafeeira, as fazendas possuíam uma estrutura completa que demandava grande mão de obra. “Quando fiz o documentário, encontrei igrejas e escolas nas fazendas, havia até cinema em algumas delas, de tanta gente que morava nessas propriedades”, relata.

Com as plantações destruídas, os agricultores se viram obrigados a iniciar um novo ciclo de plantio do café, que levaria cerca de três anos para alcançar a maturidade produtiva. A espera era inviável. De 4,5 milhões de habitantes da área rural do Paraná, quase 3 milhões saíram em direção ao cenário urbano.

O infográfico A Geada Negra de 1975 – Uma História Multidimensional retrata o impacto do fenômeno que atingiu o Paraná em julho de 1975, devastando o ciclo cafeeiro e transformando a economia e o território do estado. A ilustração mostra a queda drástica da produção de café, o êxodo rural que seguiu o colapso da monocultura e a transição para um modelo agrícola mecanizado, marcado pela expansão da soja e da pecuária no Norte do Paraná. Créditos: Ana Clara Osinski.

A memória ainda é viva

Sueli Cortiano, 63, era criança em 1975, mas recorda-se da Geada Negra com clareza. O fenômeno atingiu familiares próximos que moravam em Siqueira Campos, onde residem até hoje, e deixou marcas ainda vivas na memória. “A minha família sofreu muito com essa perda. Foi um baque muito grande. A cultura acabou-se toda, não sobrou nada na época. Então eles tiveram que recomeçar”, lembra.

“Por onde a geada passou, não sobrou uma folhinha verde para fazer um chá, queimou tudo”

Francisco Pereira, agricultor

Sueli recorda que, após esse episódio, muitas famílias saíram do norte do estado e chegaram à Curitiba. Elas se realocaram em bairros como Vila Lindoia, Novo Mundo, Vila São Pedro e Portão. Os familiares de Sueli ainda mantiveram uma condição razoável de vida, pois eram os proprietários da terra, “mas quem apenas trabalhava perdeu o emprego, perdeu tudo”, relata.

O tio de Sueli era o dono dos plantios que foram perdidos. Francisco Pereira, 80, se casou no dia 17 de julho, em Londrina. Ele não estava presente no sítio quando a geada queimou as raízes, mas de longe já sabia que tinha perdido tudo. “Eu tinha meus cafezais, estavam com dois anos. A coisa mais linda do mundo. Naquele ano eu casei e entrei em dívidas. Cheguei aqui [Siqueira Campos] e o café todinho preto, sobrou só um pé. Fiquei devendo, sem nada. Tive que financiar o café para replantar, deram mais três anos de prazo. Daí dobrou o preço”, relembra.

Mesmo para os donos do café que conseguiram vender suas terras ou grãos estocados, o tempo de recuperação foi longo. “Nesse período não tinha café, foi muito difícil. Até que ele começasse a produzir de novo foi um grande susto”, relata Sueli. A frase de seu tio resume a dimensão da perda de forma inesquecível: “Por onde a geada passou, não sobrou uma folhinha verde para fazer um chá, queimou tudo”.

Bóias-frias

Foram mais de 200 mil empregos perdidos. “Quando os agricultores foram para as cidades, não havia uma estrutura para recebê-los, então eles trabalham por demanda, parado em pontos”, afirma o documentarista. O trabalho na indústria, no entanto, era mais caro, e as cidades não comportaram o contingente. O acúmulo se deu em regiões periféricas ou cidades medianas, o que colaborou para o processo de favelização.

“Bóias-frias são o resultado das mudanças no campo”, destaca Justino. São os trabalhadores que migraram para as cidades e, por não possuírem conhecimento técnico, tiveram que se adaptar a um estilo de vida pendular, ou seja, moravam em uma cidade e se deslocavam diariamente para realizar trabalhos braçais. Uma cidade de dormitório, a outra, o polo dos ganhos financeiros e das oportunidades. 

O trabalho, caracterizado por ‘bicos’, era realizado com atividades pontuais e temporárias, e os trabalhadores, solicitados para demandas específicas e imediatas. “Eles ficavam parados em pontos, passava um caminhão e colocava para dentro quem precisava”. A moradia foi separada do trabalho. “Essa chaga permanece porque as pessoas ficaram nas bordas, e se moviam em direção aos locais onde havia trabalho”, explica o diretor do documentário.

Nos dias de hoje

Apesar de ser um fenômeno natural e, de certa forma, imprevisível em sua intensidade, uma geada negra nas proporções da registrada há 50 anos, não causaria hoje os mesmos impactos econômicos e sociais no Paraná.

Segundo o pesquisador e professor em climatologia Sidnei Jadoski, do programa Novos Arranjos de Pesquisa e Inovação (Napi), o cenário agrícola do estado mudou significativamente nas últimas décadas, sobretudo após a devastação das lavouras de café nos anos 1970. Diante da crise, o Paraná passou a investir fortemente na diversificação das culturas agrícolas, o que contribui para a redução da vulnerabilidade a eventos climáticos extremos.

“Os impactos seriam um pouco menos danosos, justamente pela diversidade de culturas. Isso é positivo para a agricultura: não depender de uma só cultura como era no café”, explica o professor.

Atualmente, os cinco produtos de maior valor de produção na agricultura paranaense são a soja, o milho, a cana-de-açúcar, o fumo e o trigo. Já o café, que por muito tempo foi o motor da economia regional, ocupa apenas a 9ª posição no ranking de valor de produção de 2024, do IBGE.

Jadoski, que atua nas previsões de índice de aptidão agrícola, destaca ainda outra mudança importante no setor: a variação no tempo do ciclo de colheita. No inverno, por exemplo, uma geada negra atingiria diretamente culturas como milho safrinha (safra menor e secundária), trigo, cana-de-açúcar, morango, uva e a produção de sementes de batata. 

Apesar das perdas, segundo o pesquisador, os impactos seriam distintos dos ocorridos em 1975, principalmente porque a maioria dessas culturas não é perene. “O trigo pode ser replantado, as hortaliças de modo geral vão ser recultivadas. Não exigiria uma mudança de culturas para o próximo ano”, observa.

Infográfico apresenta o tempo médio de cultivo de diferentes culturas agrícolas —alface, soja, trigo, milho, cana-de-açúcar e café — com base em dados da Embrapa. Mostra como o ciclo produtivo varia de semanas a anos conforme fatores genéticos, climáticos e de manejo, evidenciando a influência do tipo de cultivo e das condições ambientais no desenvolvimento das plantas.Créditos: Ana Clara Osinski.

Os danos econômicos continuariam sendo graves, especialmente para os produtores diretamente afetados, porém dificilmente atingiriam a mesma proporção da década de 1970.

Mesmo com o impacto econômico reduzido em comparação ao passado, o pesquisador faz um alerta em relação ao atual cenário de emergências climáticas. Para a ciência, as mudanças no clima tornam os fenômenos mais intensos e menos previsíveis, o que aumenta os riscos para o setor agrícola no longo prazo.

“Com as alterações no clima, os fenômenos se tornam cada vez mais intensos. Como o clima não é linear, não se dá para prever o comportamento dos fenômenos. Hoje, a visão que temos do clima é alarmista, ainda não se freou a emissão de poluição”, conclui.

Colcha de retalhos 

“Ficou marcado na nossa história de vida. Quem viveu aquela época e até quem vive após ela ainda tem sua história atravessada por essa situação”. A fala de Sueli Cortiano resume por que, mesmo após cinquenta anos, a Geada Negra continua viva na memória do Paraná.  O êxodo forçado, feito de recomeços, teceu a “colcha de retalhos” social que define hoje grandes cidades como Curitiba, como observa o jornalista Adriano Justino. 

Essa história ganha contornos visuais na galeria “50 anos da Geada Negra”, que reúne registros do fotojornalista João Urban e do acervo do Museu da Imagem e do Som do Paraná (MIS-PR). As fotografias não apenas documentam a devastação das lavouras, mas também o maior êxodo rural em tempos de paz no estado, um marco fundador do Paraná contemporâneo, que continua a reverberar os ecos da fatídica manhã do dia 18 de julho de 1975.

Texto: Alice Lima e Isadora Kovalczuk
Podcast: Alana Morzelli
Vídeo: Giuliano Carbonari
Infográfico: Ana Clara Osinski
Galeria de fotos e Making Off: Isadora Kovalczuk