“A administração pública de Curitiba tem estado em um lugar confortável de suficiência como cidade modelo. Esse discurso é introjetado há 30 anos no poder público”. A pesquisadora do Centro de Estudos em Planejamento e Políticas Públicas Urbanas Mariana Auler destaca que persistem no poder público relutâncias de ordem estritamente político-ideológicas, que não admitem a realidade do cotidiano da cidade. “Desde a década de 90, vemos um apelo muito grande na construção desse discurso e da manutenção da imagem da cidade, que é muito menor no planejamento urbano”, afirma.
A discussão sobre a territorialização de Curitiba ascendeu durante as eleições para Prefeitura da cidade, quando uma das propostas apresentadas visava tornar mais cara a passagem de acordo com a distância percorrida pelo passageiro. Preservar o público frequentador do centro e incentivar a população periférica a investir em seus próprios bairros estavam entre as justificativas. A segregação de Curitiba já é concretizada em seu planejamento urbano, como explica José de Faria, autor do livro “Conflitos Urbanos”. “O higienismo permeia todas as correntes e modelos subsequentes de urbanismo e planejamento urbano e se transforma em uma expressão de biopolítica da cidade”, explica.
O mito da cidade modelo
“Tudo é muito inteligente”, ironiza Auler. “É colocado uma luz de led e acredita-se que está se resolvendo um grande problema estrutural, quando se tem comunidades que sequer tem acesso à energia elétrica”. A doutora em políticas públicas refere-se a projetos performáticos implantados pela Prefeitura a fim de promover a imagem da cidade. “Temos uma administração que vem performando a sustentabilidade de forma bastante imagética– pequenos exemplos que são muito noticiados, e uma carência muito grande de soluções estruturais”, afirma.
Mariana remonta ao modelo ideal de Curitiba, que está na base de sua construção. Explica que a estratégia de planejamento do transporte coletivo, pensada em 1965, consistiu no adensamento da população central. “No cerne do planejamento urbano de Curitiba está a concepção do transporte em eixos estruturais”. De acordo com ela, são os mesmos eixos que hoje definem as rotas do transporte coletivo. “Hoje os usuários não estão morando nos eixos. Esse projeto dá sinais claros de esgotamento”, argumenta.
“Com o valor da tarifa e o salário que ganhamos, é impossível dizer que temos direito à cidade.”
– Vanda de Assis, conselheira do Conselho Permanente de Direitos Humanos e participante do Fórum Tarifa Zero
A engenheira civil e de transporte Tainá Bittencourt esclarece que a principal contradição do projeto diz respeito ao fato de que onde a população mais utiliza o transporte público, menor se torna o acesso ao serviço de qualidade. “Temos uma sobreposição das pessoas que moram na periferia e menores condições de acesso ao transporte público coletivo. Isso se soma a outras prioridades: são essas regiões que têm as piores condições de serviços e investimentos na estrutura urbana”, explica. Os investimentos contribuem para a desigualdade ao invés de mitigá-la, conforme o mapa apresentado pela engenheira.

“Acessar os seus trabalhos não quer dizer acessar a cidade”, declara a assistente social Vanda de Assis. “Nós queremos poder vir trabalhar, depois fazer nossas compras, ir a um espaço de lazer, visitar parentes e amigos, fazer tudo que é de direito nosso. Com o valor da tarifa e o salário que ganhamos, é impossível dizer que temos direito à cidade”, testemunha.

Sobre o rótulo de “cidade modelo”, José Faria afirma que Curitiba tem suas contradições como qualquer outra cidade brasileira, e isso não significa negar aquilo que ela tem de positivo. “Mas sim, negar o ocultamento, o apagamento que a ideia de um modelo produz ao invisibilizar todas as realidades das famílias, moradores, cidadãos que sofrem das mazelas da metropolização de uma cidade desigual”, explica.
Sustentabilidade para quem?
O presidente da Urbanização de Curitiba (Urbs), Ogeny Pedro Maia Neto, detalhou, na manhã desta terça-feira (12/12) o projeto de lei que permitirá a compra dos primeiros 70 ônibus elétricos do transporte coletivo. A proposta prevê investimento de R$317 milhões nos veículos, que será subsidiado pela Prefeitura de acordo com o atual contrato de concessão.
Maia pontua estudos como pesquisas de mercado e mapeamentos de setor que precederam a introdução de veículos elétricos no transporte coletivo. “Este é um momento muito importante, porque marca mais um passo de Curitiba rumo à eletromobilidade, com a apresentação do projeto de lei que permitirá a aquisição dos primeiros 70 ônibus”, afirma o presidente da Urbanização de Curitiba (Urbs).
“Precisamos pensar em sustentabilidade, em carbonificação”, defende pesquisadora em políticas públicas Mariana Auler. Mas ressalva que ao pensar em transporte coletivo, a primeira preocupação deve ser o sujeito que o utiliza e os impactos na sua renda e qualidade de vida. “Quem é o sujeito principal na discussão do transporte? Quem tem a renda onerada com seus valores? Quem são as pessoas que viajam 3, 4 horas ademais da própria jornada de trabalho?”, questiona.

Exclusão e desafios político-administrativos
O dirigente sindical da APP Sindicato, professor Clau Lopes, mora próximo à instalação Caximba e expressa indignação com a exclusão da região no planejamento do transporte coletivo. “Temos em Tatuquara um terminal fantasma, que não tem ligação nenhuma. Estamos na divisa da Fazenda Rio Grande e Araucária e para chegar em Araucária gastamos mais de uma hora e meia.”
“Todo o investimento está se dando em cima do Inter II e se tem gargalos extremos na região sul, precisamos pensar no Circular Sul e em linhas para a regional Tatuquara”
– Mariana Auler, pesquisadora do Centro de Estudos em Planejamento e Políticas Públicas Urbanas (CEPPUR)
Para as atrizes e atores políticos e para a sociedade civil engajada, o fundamental para esse ano é pensar em janelas de oportunidades, como explica Mariana. “Além das eleições municipais, esse ano teremos a renovação da concessão do transporte público em Curitiba, o processo de revisão do plano de desenvolvimento urbano integrado da região metropolitana, que deveríamos estar pensando de forma integrada”, esclarece.
Para que sejam resgatados esses recursos, Mariana pontua a necessidade de o IPPUC- Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba retomar seus fins. “Houve uma elitização das discussões do IPPUC e uma restrição a projetos que são mais arquitetônicos do que planejadores”, afirma.
A pesquisadora salienta que a instituição falha ao desviar sua atenção de pesquisas como a de origem-destino e a reurbanização de áreas de ocupação. “As questões mais latentes do interesse popular, a habitação e a mobilidade, estão sendo passadas ao largo do planejamento urbano, escanteadas por uma construção elitista da cidade. Elaborar um planejamento urbano que tenha como centralidade a mobilidade e a moradia é fundamental”, reforça.
Autores: Beatriz Deschamps e Luiza Yasumoto
Edição: Thais Castro e Naomi Mateus