O apito do trem faz parte da paisagem sonora de Curitiba. Mas, para quem vive perto da linha férrea, o som também representa perigo. Segundo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), entre 2004 e agosto de 2025, a capital paranaense registrou 437 acidentes ferroviários, o maior número do país. Só dentro do perímetro urbano, foram 351 ocorrências.
O volume de acidentes faz Curitiba responder por 3% de todas as ocorrências registradas no Brasil nos últimos 20 anos. São 807 municípios com algum tipo de evento ferroviário, mas nenhum se aproxima da capital paranaense: Juiz de Fora (MG), segunda colocada, teve 247 registros, pouco mais da metade.
Boa parte dos casos ocorre onde a ferrovia cruza o cotidiano da cidade: nas passagens de nível. Esses locais são os pontos em que os trilhos cortam ruas e avenidas sem viadutos ou túneis, ou seja, onde, pedestres, carros e locomotivas compartilham o mesmo espaço, e o resultado é um histórico preocupante.
O morador do bairro Uberaba, José Milton Fernandes de Oliveira, convive com o risco diariamente. “O pior de tudo é o trem que passa no horário da escola. É um fluxo de gente, de mães levando as crianças pra escola e de carros”, conta.
Além dos acidentes, o incômodo com o ruído das locomotivas também aparece entre as queixas da população. As composições passam a poucos metros das casas, especialmente em bairros como Uberaba, Boqueirão e Cajuru, e o apito do trem, obrigatório por norma de segurança, ecoa várias vezes ao dia, inclusive de madrugada.
Causas e consequências dos acidentes
Eros Kolesky, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias nos Estados do Paraná e Santa Catarina (Sindifer), comenta que o crescimento da cidade ao redor da linha e a construção de moradias próximas aos trechos ferroviários são os principais fatores que contribuem para a maior frequência dos acidentes.
Kolesky também relaciona o aumento no número de acidentes ferroviários dentro da cidade com falhas de sinalização e comportamentos imprudentes. “As pessoas tentam passar com o carro na hora que o trem tá buzinando, tentam pular os vagões, cortam até cancela se tiver”.
Para o presidente do sindicato, a sinalização das passagens de nível é precária. Ele defende a adoção do intertravamento: um sistema que sincroniza a passagem do trem com os semáforos dos carros. Kolesky ainda cita a ausência de cancelas como outra falha na sinalização.
Dos 437 acidentes registrados entre 2004 e 2025, 210 foram atropelamentos, tanto de pedestres como de ciclistas. A segunda causa mais comum, com 205 casos, foram os chamados abalroamentos: colisões entre trens e carros.

O crescimento e a queda da linha ferroviária de Curitiba
Uma das ferrovias que cortam Curitiba surgiu como um projeto internacional. A linha que hoje atravessa bairros e gera conflitos de trânsito foi idealizada ainda no século XIX, por volta de 1870, com um projeto de Antônio Rebouças. “A ideia era uma linha que ligaria Antonina até o Pacífico. Era uma linha transnacional, que acabou não sendo executada”, explica o arquiteto e urbanista Rodrigo Jabur.
O projeto original não se concretizou como previsto porque Paranaguá tinha mais domínio político local. Antonina acabou virando um ramal da linha férrea de Paranaguá. O porto de Paranaguá só passou a funcionar efetivamente nos anos 1930, consolidando a importância econômica da ferrovia.
“A ferrovia sempre foi muito importante para Curitiba e para o paraná inteiro”
Fabiano Borba, arquiteto e urbanista do IPPUC
Essa relevância ferroviária não se concentrou somente em Curitiba. Segundo o arquiteto e urbanista do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), Fabiano Borba, “a ferrovia sempre foi muito importante para Curitiba e para o Paraná inteiro”. Ponta Grossa, por exemplo, tornou-se um local estratégico. “Ponta Grossa é o entroncamento dessas linhas Norte, Sul, Leste e Oeste. É uma área muito importante da ferrovia”, afirma Jabur.
Em Curitiba, a estação central e as áreas de oficinas de trens se tornaram polos de atração urbana, mesmo quando ainda não eram regiões consolidadas. “Com o crescimento da cidade, a ferrovia que passava à margem da cidade foi crescendo em cima dela e criou um impacto que é natural em várias outras cidades”, comenta Borba. Trechos da linha que atravessam bairros foram originalmente planejados para áreas em expansão, mas hoje convivem com tráfego intenso e zonas residenciais.

Outro aspecto que impactou a decadência das ferrovias foi que, nos anos 1970 e 1980, quando elas foram estatizadas, o incentivo do governo federal era o investimento em outros meios de transporte. “A decadência acontece em função de um processo de pressão industrial para o automóvel”, explica Jabur.
Pouco depois do processo de estatização, as linhas férreas foram privatizadas novamente. Segundo Jabur, “essa privatização não está muito preocupada com questões de segurança. A gente vê pelo próprio desenho dos cruzamentos, da falta de sinalização adequada e de cancela”.
O impacto não foi somente estrutural. Áreas industriais e bairros próximos à ferrovia, como o Rebouças, sofreram processos de abandono e reocupação parcial. “Aconteceu isso também em São Paulo, que também tinha o eixo ferroviário. Depois teve que ser desviado. É natural que isso aconteça”, explica Borba.
Atualmente, o uso dos trens não traz nenhuma vantagem direta para Curitiba, se tornando obsoleto. De acordo com Borba, “é um trem que historicamente é muito importante para o desenvolvimento industrial da cidade, mas que hoje só passa por Curitiba, porque a indústria local não utiliza ele”.
Jabur defende que a ferrovia possui potencial de integração com a cidade, mas depende de planejamento sensível. “É necessário ter essa sensibilidade de entender que ali já é um espaço público, do qual algumas pessoas se apropriam. Tem balanço, alguns fazem jardim. E não é a prefeitura que faz, é ali o morador do bairro. Então existe um potencial que tinha que ser aproveitado”, observa.
Retirada das linhas ferroviárias : discussões e entraves
A retirada ou o desvio das linhas que cortam o centro de Curitiba aparece como alternativa óbvia para reduzir acidentes. Mas, além do histórico complexo, a discussão sobre remoção ou redesenho da linha enfrenta obstáculos políticos e econômicos. “Você tem o privado, que é a empresa, você tem a prefeitura que quer retirar a linha, você tem a questão da logística do transporte de materiais entre um lugar e outro. Então é um conflito, tem várias coisas, tem um plano econômico, tem uma questão de conflito de interesse”, afirma Jabur, resumindo a dificuldade em transformar a ferrovia em um espaço urbano seguro e funcional.
O secretário geral do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias do Paraná e Santa Catarina (Sindifer), Marcos Antonio Andreata, aponta que existem boas alternativas. “Existe a possibilidade de fazer percursos, no nosso entender, até mais econômicos: em linha reta, tirando um pouco de serra, tentando achar alguma forma para não só tirar as linhas da cidade, mas que também trouxesse um retorno financeiro para a empresa, seria bom para todos. Então tem como planejar, mas eu acho que falta vontade”, explica.
Também existem possibilidades também de transformar os espaços que abrigavam a linha do trem em espaços de lazer e convivência, com novos tipos de vantagens sociais e econômicas. Borba explica que “é como se a gente apagasse uma cicatriz. Quando você tira a linha férrea de dentro da cidade, você reocupa aquele espaço com estruturas urbanas, de comunidade ou até mesmo ocupação imobiliária”.
Além da “falta de vontade” citada por Andreata, os projetos que buscam essa retirada esbarram em intrigas políticas e em questões ambientais. Um dos projetos de desvio da linha ferroviária, proposto em 2002, está engavetado por problemas de concessão de licenciamento ambiental. O novo trajeto passaria entre duas áreas de proteção ambiental (Passaúna e Rio Verde).
Sobre as dificuldades que os projetos enfrentam Andreata adiciona: “Eu acho que todo projeto, ele tem que ter um início e um final. A equipe que vai fazer, quem vai fazer o percurso, quem vai pagar. Esse planejamento é que nunca chega. Sempre bate na trave e não chega no resultado.”
O dia a dia dos maquinistas
No Paraná, os maquinistas enfrentam escalas de trabalho intensas: seis dias consecutivos de trabalho, seguidos de dois dias de folga. As jornadas são de oito horas divididas em turnos: das 7h às 15h, das 15h às 23h e das 23h às 7h. Maquinista há mais de dez anos, Eduardo Bezerra descreve a rotina como cansativa, e lembra que o risco de acidentes está sempre presente. “É constante, é todo dia. Além dos acidentes que já tem, tem também os que a gente evita. Todo dia tem um quase acidente que o maquinista evita”, relata.
Tanto para Kolesky quanto para Andreata os acidentes de trens raramente são resultados de falhas do maquinista. Segundo eles, os procedimentos e as medidas de segurança exercidas durante as viagens reduzem os riscos de falhas. O Computador de Bordo da Locomotiva, conhecido como CBL, registra automaticamente todas as ações do maquinista durante a viagem.
Além disso, o Centro de Controle Operacional (CCO) monitora toda a condução, e caso perceba alguma ação irregular, entra em contato com o maquinista em tempo real. Em casos de registro de irregularidades e imprudências, o maquinista pode ser penalizado e eventualmente sofrer advertências e suspensões ou uma demissão.
“Não existe acidente bonito na ferrovia. É pesado falar isso, mas é no mínimo um membro que você perde”
Eduardo Bezerra, maquinista
O constante risco de acidentes, a responsabilidade pela carga carregada e o grande tempo que passam sozinhos são fatores que tornam o trabalho do maquinista uma atividade de alta pressão psicológica. Sobre os acidentes, Bezerra adiciona que: “Não existe acidente bonito na ferrovia. É pesado falar isso, mas é no mínimo um membro que você perde. Por isso precisamos manter nossa percepção de risco ativa.”
O cotidiano dos maquinistas revela apenas uma face de um problema maior. Fora da cabine, a ferrovia segue dividindo a cidade, em todos os sentidos. Entre buzinas, cruzamentos e memórias de um tempo em que os trilhos eram sinônimo de progresso, a linha que corta Curitiba continua à espera de uma solução.
Décadas se passaram, mas pouco mudou. O traçado segue o mesmo, somando acidentes, histórias e a urgência de uma resposta que nunca sai do papel.
Reportagem: Eduardo Perry, Gustavo Beckert, Luísa de Cássia, Vitor Benini e Vitória Panza