Localizada no litoral paranaense, no município de Guaraqueçaba, a Ilha das Peças é historicamente habitada pelos caiçaras, povo tradicional oriundo da miscigenação entre indígenas, portugueses e africanos. Atualmente, vivem cerca de 300 pessoas (originários) na Ilha. A subsistência no local é provida, majoritariamente, pela pesca, turismo e eventuais trabalhos em casas de veraneio.
A Ilha passa, entretanto, por um processo de ocupação de terras por pessoas com alto poder aquisitivo, os chamados veranistas, que constroem no local casas de férias de alto padrão. Cerca de 100 casas de veraneio foram construídas na Ilha nos últimos anos.
Esse processo de ocupação vem sendo marcado por infrações ambientais. Uma fonte Ministério Público Federal (MPF), confirma “mais de 20 autuações já foram realizadas na Vila das Peças. Essas autuações são “contra casas de veraneio que foram construídas sem autorização ambiental, muitas em áreas de preservação permanentes [restingas e mangues]. Os proprietários podem estar sujeitos a sanções cíveis e criminais”, explica a fonte do MPF.
A casa do empresário Marcos Rogério Greca é uma das construções que supostamente estariam em desacordo com a lei e com as normas ambientais. O empresário cercou com muros o acesso à praia, criando uma “praia privativa” para si, além de ter construído seu imóvel em área de proteção permanente de restinga. Até 2023, o imóvel encontrava-se embargado pela Justiça. Solicitada, a defesa do empresário não prestou declarações.
Outras denúncias que relatam abusos por parte dos veranistas foram ouvidas pelo Jornal Comunicação. Uma liderança local diz que um imóvel teria sido construído ao lado do antigo local de descarte de lixo da Ilha. O dono do imóvel teria aberto uma trilha por dentro de mata e “realocado” o local de descarte de lixo para dentro do manguezal.
Os mangues constituem pelo Código Florestal áreas de preservação permanente e a violação dessas áreas pode incorrer em punição legal. Segundo a lei de crimes ambientais, quem danificar vegetações de áreas de preservação permanente fica sujeito a uma pena de detenção de 1 a 3 anos.
Desacordo entre lideranças locais
Na Ilha das Peças, as opiniões sobre a questão dos veranistas não são unânimes. O agente de campo e atual presidente da Associação de Moradores, Luis Fernando, 35 anos, fala sobre a relação da comunidade com os proprietários das casas. “Nós não temos conflito nenhum com eles, exceto algumas situações que tivemos com alguns que cortavam restinga […] Conflitos pessoais nunca ocorreram, eles sempre respeitaram. O pessoal [moradores da Ilha] todo trabalha em casa de veranista. Hoje, nós buscamos estabelecer uma relação familiar entre eles e o pessoal da Ilha.”
Outra liderança local, que pediu para não se identificar, não concorda com essa visão. “Somos uma comunidade tradicional. A terra daqui é nosso território por lei. O meu medo é que nosso território seja ocupado e que não haja espaço, no futuro, para o morador local”.
Segundo ele, a convivência com veranistas não é tranquila. “Aos finais de semana, não posso sair para fora de casa, pois alguns veranistas andam pela Ilha bêbados e armados, e eles sabem que eu represento uma oposição. Eles chegam a ir na minha lojinha para me intimidar”, denuncia. A liderança ainda relata que uma pessoa teria sido contratada para ameaçá-lo.
Uma fonte do (MPF) confirma que o órgão recebeu um documento do Ministério da Justiça, que relata as retaliações contra a liderança. O MPF acompanha o caso.
Atendimento jurídico
Ao longo da história, os caiçaras se desenvolveram em comunidades locais, isoladas no litoral. A cultura caiçara é marcada pela íntima relação de seus integrantes com a natureza – povo do mar e da floresta, que extrai desses locais o necessário para a sobrevivência. Hoje, se encontram predominantemente em áreas litorâneas do Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina.
Segundo o site governamental “Portos do Paraná”, apenas no litoral norte do estado existem mais de 60 comunidades que variam entre indígenas, caiçaras e quilombolas.
A Ilha das Peças está localizada na Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba, e é habitat de espécies que ocorrem exclusivamente nesta região, como o Papagaio da Cara-Roxa, e o recém-descoberto Mico Leão da Cara-Preta.
Longe da lógica eurocêntrica de “desenvolvimento”, os caiçaras partilham um modo de vida singular: são, historicamente, um povo que se desenvolveu a partir da pesca, plantio e caça. Porém, o isolamento histórico e a falta de políticas públicas resultaram na falta de acesso a direitos básicos por estas comunidades – uma realidade que aos poucos vem sendo revertida por projetos como o Aproxima JFPR.
A comunidade da Ilha das Peças é uma das atendidas pelo projeto “Aproxima JFPR” que visa levar atendimento jurídico e garantir a comunidades isoladas do litoral paranaense o acesso a direitos constitucionais. Liderada pela Justiça Federal do Paraná (JFPR), a iniciativa desenvolve diversas ações, compostas por um mutirão de órgãos do Estado – principalmente do judiciário.
A diretora da Divisão de Planejamento e Gestão da JFPR, Kely Cristina Laurentino, explica que o projeto foi idealizado no final de 2023, durante uma visita da Direção do Foro à Subseção Judiciária de Paranaguá, em que o foco da conversa foram as comunidades de difícil acesso do litoral paranaense. “A ideia desde o início foi viabilizar direitos a estas comunidades, levar o judiciário até elas”, afirma.
Do último mutirão na Ilha das Peças, realizado no dia 13 de setembro de 2024, participaram representantes do CRAS – Guaraqueçaba, da Defensoria Pública da União (DPU), da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE), do INSS, do Instituto Água e Terra (IAT), da Justiça Federal do Paraná (JFPR), da Marinha do Brasil, do Ministério Público do Estado do Paraná (MPPR), do Ministério Público Federal (MPF), da Polícia Federal (PF) e da Polícia Militar, da Receita Federal do Brasil (RFB) e da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Na visita, cerca de 70 famílias foram atendidas e receberam orientações jurídicas para a regularização de documentos, viabilização de benefícios previdenciários e assistenciais, inclusão no CadÚnico, consulta a processos em andamento e questões de direito da família.