Por Ana Livia Barboza e Camila Calaudiano
Há pessoas que estudam a cidade e há pessoas que escutam a cidade. Key Imaguire Junior pertence ao segundo grupo. Ele entende Curitiba como uma espécie de organismo vivo, que respira, envelhece, esquece e que, às vezes, tenta lembrar de quem já foi.
Arquiteto e doutor em história pela Universidade Federal do Paraná, Key conhece a capital paranaense como a palma da mão e tem assistido às mudanças — aquitetônicas e sociais — de camarote há 79 anos. Professor aposentado da mesma universidade que o formou, Key luta pela preservação da cidade, que nada mais é do que a preservação da memória. Mas não entra nessa batalha com ímpetos saudosistas. Quer, mais do que tudo, que mantenhamos uma autenticidade que tem se perdido com a padronização da arquitetura, e que, no final, reflete-se no interior de cada um. Viramos insetos, morando em colmeias padronizadas e reproduzindo o comportamento da massa.
Nesta entrevista, entramos no território de Key. Um território que é, ao mesmo tempo, urbano e filosófico. Falamos sobre memória, sobre padronização, sobre o futuro das cidades e sobre o que significa, afinal, habitar: não apenas ocupar um espaço, mas fazer parte dele.
Ouvir Key Imaguire Junior é ouvir a cidade falando de si mesma.
Quando a gente anda por Curitiba, vê uma convivência entre prédios luxuosos, espelhados, modernos, e construções mais antigas. O que explica isso?
Key: Isso se chama obsolescência de mercado. O mercado precisa vender modernidade. Ele te diz: “Aqui você vai ser moderno, não é como quem vive naquele prédio antigo”. Por isso essas fachadas espelhadas, que são um absurdo. Um prédio é um monstro de consumo energético: elevadores, bombas d’água, garagens, ar-condicionado por todos os lados… tudo isso produz calor.
E esse calor afeta o clima da cidade?
Key: Afeta muito. Aqui em Curitiba, esses temporais de granizo raramente chegam ao centro. Por quê? Porque o calor produzido pelos prédios muda o microclima. Ele empurra certos fenômenos para fora, altera a vida no centro — para o bem e para o mal. Eu mesmo, às vezes, mesmo com ar-condicionado, preciso de ventilador. É energia virando calor o tempo todo.
Falando de dentro de casa: hoje temos pouco espaço, pouco tempo para ficar em casa, trocamos livros por tablets. Como isso afeta a gente enquanto humanidade?
Key: Isso faz parte da tendência que chamei de insetização do ser humano. O que é um grande prédio residencial? Ele é um cupinzeiro. Tem uma tendência a todo mundo ser igual. Morar igual, fazer as mesmas coisas, ir aos mesmos lugares. Aquele fator cultural que é o que diferencia as pessoas tá desaparecendo. Tanto que as casas têm essa tendência, a serem todas iguais. É aquele nicho de 50, 60, 70 m², sem elementos que expressem individualidade.
E isso aparece também nesses comportamentos padronizados. Bares lotados, shows, todo mundo indo aos mesmos lugares…
Kay: Claro. Essa semana mesmo, fui com amigos na Comendador Araújo. As ruas apinhadas de gente. As pessoas não ficam no bar, ficam na calçada. A mesma coisa em shows, como na Pedreira: milhares de pessoas fazendo exatamente o mesmo. Isso homogeneíza o gosto. Romper com isso é quase impossível, porque teus amigos fazem isso, tua família faz isso… você não vai na contramão.
Essa padronização vem da arquitetura influenciando o estilo de vida, ou do estilo de vida influenciando a arquitetura?
Key: Das duas coisas. E observe: “casa”, no sentido tradicional, está desaparecendo. A tendência é todo mundo morar em apartamento. Aqui no meu bairro, que conheço há 50 anos, a parte residencial sumiu. Virou clínica, escritório, consultório. Casa com gente morando virou raridade. Eu moro numa porque herdei e pude manter, mas sei que é um privilégio.
E as plantas dos prédios novos já seguem essa lógica, né?
Key: Totalmente. Pegue a planta de qualquer prédio novo, daqueles que anunciam no sinaleiro. Não existe um elemento individualizador. Antigamente as casas tinham gabinete, escritório, sala de costura… As mulheres tinham seu gabinete. Hoje isso não existe mais. É tudo reduzido ao mínimo.
E atividades como cuidar de jardim, ter plantas, observar pássaros…
Key: Quase ninguém quer. Cuidar de jardim cansa. Animais? Só o que cabe no apartamento, um gatinho ou um cachorrinho. Cuidar de plantas, acompanhar os passarinhos do bairro… isso está desaparecendo. A individualidade se torna um problema dentro da sociedade de consumo: você quer produzir algo que todo mundo compre. Quanto mais gente consome, melhor. Então você padroniza tudo.
E o que acontece com as identidades regionais nesse processo?
Key: Elas são consideradas ultrapassadas. Essas tendências regionais são vistas como coisa antiga, superada. O modernismo tem essa característica internacional: o que é moderno é moderno em qualquer lugar. Então a arquitetura do mundo inteiro se homogeneíza. Tanto faz se o prédio está em Curitiba, Tóquio, África ou Europa.
Diante das mudanças climáticas, a arquitetura precisa se adaptar?
Key: Sem dúvida. A preocupação mundial com o clima é enorme. Precisamos adaptar a arquitetura e, nesse sentido, desenvolver construções em madeira pode ser muito importante. É uma alternativa sustentável e necessária.


