Fátima A.  tinha uma gravidez de risco por conta da hipertensão e outros fatores de saúde. Segundo o relato, em casos como o dela, a via de parto precisa ser a cesárea para garantir a segurança do bebê e da mãe. Moradora de cidade pequena, ela começou a ter sintomas de hipertensão frequentes no oitavo mês e recorreu ao hospital da cidade vizinha por diversas vezes. “Era medicada e mandada embora, no dia seguinte a pressão subia de novo”, disse. Quando chegou perto da data do parto, o médico se recusou a fazer a cesárea pelo grau de responsabilidade do caso dela, ele então pediu a transferência de Fátima para outro hospital.  

Sabendo que ela não tinha mais condições de se locomover e com a demora do procedimento, a mãe e o bebê poderiam ter tido sequelas graves. Por pressão jurídica do hospital, o médico enfim cedeu e realizou o parto. “Eu fiquei três dias ali, penando, eu estava deitada na mesa e antes dele fechar a minha barriga ele disse que nunca mais faria nenhum parto meu […] fiquei sabendo depois que ele disse para outra gestante que mulher gorda não podia engravidar […] foi muito doloroso”, relatou Fátima. 

A violência a que Fátima foi submetida ao final da gravidez e no momento do parto é um caso dentre tantos que ocorrem no país. Trata-se de violência obstétrica, caracterizada pela prática de abuso cometido pela equipe médica no pré-natal, durante o parto e depois, e que deixa marcas profundas no psicológico e físico das vítimas. 

As consequências da violência obstétrica são tantas que, em 2022, o Brasil registrou números elevados de morte materna, cerca de 58 mortes para cada 100 mil nascidos vivos. Os dados do Ministério da saúde indicam ainda que, apenas em grupos de mulheres pretas, a taxa de mortalidade materna dobra. Apesar das taxas de mortalidade materna terem razões diversas, o alto número reflete a baixa qualidade da assistência médica oferecida para gestantes no Brasil.  

A pesquisa “Nascer no Brasil 2: Inquérito nacional sobre perdas fetais, partos e nascimentos (2020 a 2022)”, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), indica que os abusos são mais frequentes em mulheres pretas e pardas. Nos resultados parciais, estas mulheres apresentam maior tendência a receber um menor nível de assistência médica e a ter o seu direito a acompanhante negado. 

O que é violência obstétrica?  

Considera-se abuso obstétrico toda forma de violência por parte dos profissionais de saúde, seja ela psicológica, física ou até mesmo sexual praticada antes, durante ou depois do parto. No Brasil, cerca de 45% das mulheres atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) já foram vítimas de algum tipo de maus-tratos no parto, e em hospitais privados, o índice é de 30%, segundo o projeto Nascer no Brasil, realizado em 2021. 

Para a médica ginecologista e obstetra Jéssica Longo, da maternidade do Hospital de Clínicas, a violência obstétrica pode ter muitos formatos, alguns mais sutis, outros facilmente identificados. Pode configurar abuso médico: falta de informações claras a respeito das vias de parto e consultas pré-natais; xingamentos e comentários desrespeitosos; intervenções desnecessárias ou sem consentimento; ter a presença de acompanhante negada; acelerar o parto ou realizar uma cesárea sem necessidade, entre outros casos.  

Longo afirma que outro episódio comum é a realização de procedimentos desnecessários e invasivos, sem o consentimento da mulher. “Cortes (episiotomias), toques vaginais excessivos, manobras como empurrar a barriga da gestante na hora do nascimento (manobra de Kristeller), são formas características de violência obstétrica, hoje em dia mais facilmente reconhecíveis”, diz. 

Os tipos mais comuns de violência obstétricas realizadas por médicos e enfermeiros na maternidade, segundo a Pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Públicos da Fundação Perseu Abramo, são: exame desnecessariamente doloroso, negação para alívio de dor, atitude grosseira, falta de informações sobre o procedimento, negação ao atendimento, xingamentos e humilhações, assédio sexual, e outros tipos de agressões físicas. Os dados coletados fazem parte da Pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Públicos, da Fundação Perseu Abramo, que ocorreu em 2010. 

Fonte: Pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Públicos, Fundação Perseu Abramo, 2010. Arte: Alice Lima

Consequências da violência

Os efeitos das violências sofridas não permanecem entre as paredes das salas dos hospitais. As consequências da negligência médica são carregadas pelas vítimas por muito tempo, às vezes para o resto da vida.  

“Cada vez que a gente se toca, a gente lembra do que passou.”

Fátima A, vítima de violência obstétrica. 

Existem efeitos físicos e emocionais graves, como dores crônicas, problemas na região pélvica, descolamento de placenta, mutilação genital e o desenvolvimento de transtornos como depressão pós-parto, ansiedade e até transtorno pós-traumático. Além da saúde da mulher, a violência pode dificultar o parto e sujeitar o bebê a sofrer com problemas respiratórios, principalmente quando a cesárea é feita antes do tempo ideal, sem reais motivos médicos. 

A realização sem consentimento da episiotomia, um corte realizado entre a vagina e o ânus para ampliar o canal de parto, é responsável por parte dos índices de depressão pós-parto. Segundo um estudo realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com 287 mulheres grávidas, entre 2016 e 2018, grávidas que passaram por esse procedimento não- consentido tiveram 2,7 vezes mais chance de terem sintomas de depressão pós-parto, e aquelas que solicitaram analgesia e não receberam apresentaram 2,5 vezes mais chance de desenvolver a doença. 

Fátima A. relata que frequentemente se lembra do ocorrido. “Ele fez um corte bem grande na minha barriga […] parece que sempre quando eu passo a mão tem a dor, cada vez que a gente se toca, a gente lembra do que passou.” Além das marcas físicas, Fátima relata as dificuldades emocionais que vieram da violência. Segundo relato, ela acredita ter passado por uma depressão pós-parto, os choros eram constantes quando ficava sozinha.  

Ela também conta que por conta do estresse vivido no hospital, tinha um medo constante de perder seu filho. “Eu tinha tanto medo de acontecer alguma coisa com ele que eu quase não dormia de noite, eu dormia só no cansaço, […] e eu não era muito de conversar, não abria para ninguém.” 

As violências também impactam negativamente a experiência da mãe com o ambiente hospitalar. Michele S., outra vítima da violência obstétrica, relata que sofreu com a falta de informação extrema e demorou três anos para engravidar novamente por medo.  

A médica obstetra, Jéssica Longo, confirma que o relato de Michele não é único, visto que “em muitos casos, essa experiência negativa também gera medo de futuras consultas e atendimentos médicos, afetando o acompanhamento da mulher ao longo da vida”.  

Medidas judiciais 

Em 2024, o Paraná sancionou a Lei Nº 21.926 que consolida a legislação paranaense relativa aos Direitos da Mulher, criando o Código Estadual da Mulher Paranaense. A seção dos artigos 110 a 117 diz respeito à violência obstétrica e garante uma série de direitos à gestante. 

De acordo com a norma, são reservados à gestante e à puérpera o direito de saber a evolução do seu parto e o estado de saúde de seu filho, e de receber informações dos métodos e procedimentos disponíveis para o atendimento durante a gestação, durante o parto e nos períodos pré-parto e puérpera. As leis também garantem o direito de consentir com as intervenções médico-hospitalares que podem ser realizadas, podendo optar livremente quando houver mais de uma alternativa. 

Leis que asseguram os direitos da pessoa gestante no Paraná existe há quase 20 anos. Arte: Alice Lima. Fonte: Cartilha da Defensoria Pública do Paraná  

Atualmente, ainda não existe uma lei em âmbito nacional que tipifique as ações de violência obstétrica como crime, processo que dificulta a identificação e combate das práticas abusivas. 

Caminhos de denúncia  

Jéssica Longo afirma que para criar um ambiente livre de violência obstétrica é preciso que as práticas abusivas sejam identificadas e combatidas. “Toda gestante merece uma experiência digna, respeitosa e segura, tanto para a ela quanto para o seu bebê”, diz. 

Confira os canais de denúncia de violência obstétrica no Paraná: 

  • No hospital, clínica ou maternidade em que a vítima foi atendida; 
  • Números 180 ou 136; 
  • Telefone 08007019656 da Agência Nacional de Saúde Suplementar.  

Ficha técnica

Reportagem: Alice dos Passos Lima

Edição: Isadora Dias Kovalczuk

Orientação: Cândida de Oliveira