Egressas relatam falha do Estado em implementar meios para reinserção e vida digna
Por Ana Livia Barboza e Camila Calaudiano
Vanessa do Rocío de Lima Chagas tem 54 anos e, em 2013, foi condenada a 53 anos de prisão. Natural de São Paulo, ela cresceu numa família de mães solos e no próprio seio familiar conheceu as drogas. Aos 18 anos já era usuária e praticava o estelionato.
Aos 23 ela se mudou para Curitiba a procura de melhores oportunidades de trabalho, mas fez amizades duvidosas e intensificou a vida no crime. Além do estelionato, passou a realizar pequenos furtos. Foi presa diversas vezes, mas subornava os policiais para sair da cadeia.
“A polícia é muito corrupta, isso me levava a cometer mais crimes e mais crimes pra pagar”, conta ela. Após cumprir três anos da pena em regime fechado, cumpriu mais três em prisão domiciliar e, em 2020, passou a usar tornozeleira eletrônica.
De volta à vida em sociedade, Vanessa enfrentou desafios e preconceitos. Do lado de fora, ela tinha algo que muitas mulheres que vão presas não têm — uma família para apoiá-la.
Mãe de três filhos quando adentrou o cárcere, Vanessa pôde contar com a mãe para cuidar deles e visitá-la na prisão. “Na cadeia a gente vale o quanto tem. Se você tiver uma família, se você tiver uma sacola, alguém que leve alguma coisa para você, as pessoas te tratam bem. Se você não tem nada, você é tratado como nada”.
Na prisão, a sacola é muito importante. Significa que tem alguém do lado de fora esperando por aquela pessoa e que levará a ela “mimos” que não existem do muro pra lá, como um bom sabonete, um shampoo ou absorvente, por exemplo. Itens que, muitas vezes, garantem a segurança da detenta, que pode usar os objetos como moeda de troca.
“Na cadeia a gente vale o quanto tem”
Vanessa já não era mais usuária de drogas desde 2010, o que facilitou sua vida no presídio. Ela pôde trabalhar e estudar, o que apesar de ser um direito de todas as pessoas privadas de liberdade (PPLs), garantido pela Lei de Execução Penal (LEP), não é concedido para a maioria.
Segundo o Levantamento de Informações Penitenciárias do primeiro semestre de 2025, apenas 47% das mulheres privadas de liberdade trabalham no estado do Paraná. 14% delas não recebem remuneração alguma pelo trabalho prestado, somente remição de pena. Outros 14% recebem menos que ¾ de um salário mínimo.
O número de mulheres privadas de liberdade que estudam no Paraná não é mais expressivo, somando somente 48%. “A escola também não abrange todo mundo. A escolha acaba sendo da direção, de quem estuda e quem trabalha. Aquilo que era direito passa a ser privilégio”, expõe Waleiska Figueiras, presidente do Conselho da Comunidade de Curitiba, órgão de apoio ao sistema de execução penal cujo objetivo é dar assistência a pessoas privadas de liberdade, egressos, familiares e vítimas de crimes.
Após quatro anos trabalhando, estudando e 11 anos cumprindo a pena no regime estabelecido, Vanessa voltou para a prisão por ordens judiciais. Houve uma revisão em seu caso e ela foi apreendida novamente. Vanessa já trabalhava há quatro anos nas Centrais Estaduais de Abastecimento (Ceasa) e ficou cerca de mais cinco meses detida.
“Foi frustrante para mim, sabe? Acho que foi pior do que quando eu fui presa da primeira vez, porque quando eu voltei para o presídio eu não fazia mais nada de errado. Eu tava trabalhando já há 4 anos na Ceasa, já estava estabilizada, minha casa estava em ordem, as contas em ordem, e desses 5 meses que fiquei lá eu ainda estou me recompondo”.
Vanessa está terminando o curso de empreendedorismo na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e pretende iniciar uma faculdade em seguida.
“É como se fosse um canil que coloca os bichos dentro da jaula, dá comida e pronto”, diz Vanessa do Rocío de Lima Chagas, egressa do sistema prisional em setembro deste ano.
Infográfico: Camila Calaudiano
O Paraná é o terceiro estado com a maior população carcerária feminina em regime fechado no Brasil, segundo o Levantamento de Informações Penitenciárias do primeiro semestre de 2025. E as ações de ressocialização voltadas a mulheres após a vida no cárcere são insuficientes, a maioria iniciativas de ONGs e instituições religiosas.
O Paraná é o terceiro estado com a maior população carcerária feminina em regime fechado no Brasil, segundo o Levantamento de Informações Penitenciárias do primeiro semestre de 2025. E as ações de ressocialização dessas mulheres após a vida no cárcere são insuficientes, a maioria iniciativas de ONGs e instituições religiosas.
“Passamos por um sistema que não ressocializa. As mulheres têm poucas oportunidades de crescimento, não existem opções para termos um recomeço. Somos simplesmente colocadas para fora e virem-se”, relata Rosangela Carvalho (nome fictício), egressa do sistema prisional.
Segundo Waleiska, uma ressocialização efetiva, que prepare essas mulheres para voltarem a viver em sociedade de forma digna e dentro da lei, deveria começar enquanto elas ainda estão no cárcere. Uma realidade que se mostra distante, já que nas prisões do Paraná nem o limite de capacidade das celas é respeitado.
Em junho de 2024, a Defensoria Pública do Estado do Paraná produziu um relatório evidenciando as falhas da Cadeia Pública de Astorga – CPAST, que comporta exclusivamente mulheres. Naquele mês, a penitenciária tinha capacidade para 35 pessoas, mas contava com uma população total de 79 detentas, uma superlotação de, aproximadamente, 225%.
Casos como o de Astorga não são isolados. Em julho de 2022, a Defensoria Pública do estado já havia vistoriado a Cadeia Pública do Alto Paraná – CPATPR e recomendou melhorias. Entre as recomendações, estavam a remição por leitura ou estudo e a apuração de denúncias de agressões e violações de direitos por agentes do Setor de Operações Especiais (SOE). Segundo relatório de uma nova vistoria, em abril de 2024, “a situação continua a mesma em muitos dos casos e houve piora em outros”.
O presídio também continua superlotado, cerca de 150% acima da capacidade máxima.

O sistema prisional brasileiro não é gentil com ninguém, mas é especialmente cruel com as mulheres. Os desafios diários enfrentados por grande parte das mulheres em liberdade, como saúde, educação e trabalho, se repetem e se agravam no cárcere, quando estas ficam totalmente dependentes do que lhes é oferecido ou negado pelo Estado.
A Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984) determina que a assistência ao preso é dever do Estado, visando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. Essa assistência deve abranger aspectos materiais, de saúde, jurídicos, educacionais, sociais e religiosos, estendendo-se também ao egresso.
Em outras palavras, pessoas privadas de liberdade têm os mesmos direitos fundamentais que qualquer cidadão. A pena deve representar uma punição pelo crime cometido, mas também uma oportunidade de ressocialização e reintegração social. Na prática, porém, a lei raramente é aplicada como deveria.
“Nas nossas vistorias a gente encontra coisas absurdas, pessoa com cirurgia aberta. Não tem médico, não tem professor para dar aula, não tem policial penal para movimentar essas pessoas dentro da unidade”, denuncia Waleiska.
Segundo o Levantamento de Informações Penitenciárias, até o segundo semestre de 2024 o sistema prisional do estado do Paraná não contava com nenhum ginecologista. Somente no primeiro semestre de 2025, uma médica efetiva e uma médica terceirizada foram contratadas. Duas profissionais para um sistema que conta com 2.436 mulheres privadas de liberdade. “O cárcere foi pensado por e para homens”, evidencia Waleiska.
O perfil do cárcere
“Toda vez que eu conheço uma nova história, eu descubro uma nova forma de uma mulher sofrer violência que nunca tinha passado pela minha cabeça”
Luana Pereira é psicóloga e trabalha no Centro de Integração Social de Piraquara (CIS), onde realiza o atendimento clínico individual de mulheres em situação de cárcere privado, duas vezes na semana, como parte de uma pesquisa de estresse pós-traumático que participa.
“Toda vez que eu conheço uma nova história, eu descubro uma nova forma de uma mulher sofrer violência que nunca tinha passado pela minha cabeça. Uma nova forma de tortura, uma nova forma de controle, uma nova forma de violência sexual”, relata Luana.
E muitas dessas violações começam na infância, “Já tive caso da violência sexual começar aos três anos de idade, onde a paciente ouvia frases do tipo ‘agora eu vou te ensinar a ser mulher’, com três anos de idade”, conta Luana.
Em sua experiência, Luana confirma alguns dados comuns quando se trata do perfil das mulheres em cárcere privado no Brasil. Segundo o Levantamento de Informações Penitenciárias, no Paraná a idade das detentas varia entre 18 e 70 anos, sendo a maioria na faixa etária de 25 a 35 anos, pretas e pardas, e que não terminaram o ensino fundamental. Muitas delas também são mães (84%).
Infográfico: Ana Livia Barboza
Os dilemas da ressocialização
“Eu tenho várias questões com a palavra ressocialização. Lá dentro as pessoas vivem num ambiente social. E aí se a gente falar da socialização com a sociedade extra-muros, elas já foram dessocializadas. A gente precisa discutir como reintegrar essas pessoas numa vida da qual ela foi tirada. O seu jeito de se relacionar com o outro, de dormir, de comer, de tomar banho, de usar o banheiro, tudo foi alterado. Ela precisa ser reintegrada a essa nova forma de viver aqui de fora”, evidencia Waleiska
“O seu jeito de se relacionar com o outro, de dormir, de comer, de tomar banho, de usar o banheiro, tudo foi alterado. Ela precisa ser reintegrada a essa nova forma de viver aqui de fora”
A fala de Waleiska revela um ponto sensível: a liberdade, muitas vezes, não representa um recomeço imediato. O retorno à sociedade é marcado por inseguranças, estigmas e pela ausência de políticas que garantam condições reais de reintegração.
“Quando eu fiquei sabendo que ia sair [do sistema prisional] entrei em desespero porque a minha família tinha me abandonado”, conta Bruna Melo, egressa do sistema prisional.
Bruna contou com a ajuda dos advogados para alugar uma kitnet após receber o direito de cumprir o resto de sua pena em regime semiaberto, no qual a pessoa privada de liberdade pode trabalhar e estudar durante o dia, mas deve retornar ao presídio ou a uma colônia penal para passar à noite. Nas ocasiões em que não existe estabelecimento adequado para o pernoite, o egresso pode cumprir prisão domiciliar e ser monitorado por tornozeleira, garantindo as prescrições do regime semiaberto.
Após três meses vivendo nesse regime, o locatário do imóvel em que Bruna morava descobriu que ela usava tornozeleira eletrônica e a avisou que o contrato de aluguel não seria renovado. “Saí antes do final do contrato porque me senti muito humilhada. Ouvi várias coisas horríveis”, relembra Bruna. “Hoje eu não falo para ninguém, só uso calças largas, tênis, meias para apertar o máximo possível para ninguém ver”.
O preconceito e a solidão não foram os únicos reveses impostos à Bruna após à prisão. Problemas renais, agravados pela falta de assistência médica do sistema penitenciário, a acompanham até hoje. “A dor maior é não ter contato com os seus filhos e ficar doente lá dentro, sem o tratamento adequado. Eu só tô de pé porque Deus é muito grande”, relata Bruna.
Assim como Vanessa, Bruna voltou a ser presa após viver dois anos para fora dos muros, com tornozeleira eletrônica. Ela não cometeu um novo crime, mas seu caso tramitou em julgado, ou seja, a decisão judicial se tornou definitiva e imutável, pois todas as possibilidades de recurso foram esgotadas. A partir desse momento, a decisão não pode mais ser alterada ou questionada na justiça, encerrando o caso.
Para Waleiska, histórias como a de Bruna evidenciam que a ressocialização ainda é uma promessa distante. “É preciso abandonar o olhar punitivista que prevalece no Brasil, onde as pessoas comemoram prisões e acham que o encarceramento resolve todos os problemas”, afirma. Ela defende que a verdadeira reintegração exige mudanças tanto na estrutura do Estado quanto na mentalidade coletiva, que ainda insiste em punir, mesmo depois da pena cumprida.
Suporte para recomeçar
Para além de seu trabalho no Conselho da Comunidade, Waleiska fundou, em 2020, motivada pelas dificuldades crescentes no período pandêmico, o Coletivo Você Não Está Sozinha, voltado a auxiliar mulheres em condição de vulnerabilidade, inclusive mulheres privadas de liberdade e egressas.
Uma das ações do coletivo é o “Dia fora da cela”. Nesse dia, cerca de 40 a 50 mulheres são escolhidas para participar de uma programação voltada ao cuidado e à autoestima.
A primeira atividade do dia é a escolha das roupas, um gesto simbólico que permite que elas se vejam fora do uniforme laranja e branco. Depois, as participantes podem fazer cabelo, maquiagem, unhas e participar de conversas com profissionais de psicologia e terapias integrativas.
Ao final, é realizado um ensaio fotográfico. Cada mulher recebe duas fotos impressas, um registro de si que muitas não têm há anos. Waleiska conta que uma das participantes chorou ao se ver na imagem: “Ela falou que não se lembrava da última vez que tinha se visto no espelho. Ela não lembrava nem como era o seu rosto”.

O coletivo também busca oferecer apoio no momento da saída da prisão, quando o desafio da reinserção social se torna ainda mais intenso. Ao deixar o sistema prisional, cada mulher recebe um kit de acolhimento, com itens básicos de higiene — como shampoo, condicionador, sabonete e hidratante — além de roupas, calçados e uma bolsa. Sempre que possível, o coletivo também fornece um celular, ferramenta essencial para que elas possam retomar o contato com o mundo e buscar novas oportunidades.
Em parceria com o Conselho da Comunidade, as mulheres egressas são encaminhadas ao Escritório Social, que oferece suporte jurídico e auxilia na busca por emprego. Dependendo da situação de cada uma, o coletivo ainda colabora com cestas básicas e cartões de transporte, garantindo o mínimo necessário para essa retomada de vida.
Waleiska explica que o objetivo é garantir que nenhuma mulher fique desamparada nesse processo: “A gente tenta dar o suporte nesse início, para que ela consiga se reorganizar, visitar o advogado, procurar trabalho, reconstruir seus vínculos”















