Curitiba é frequentemente celebrada por seus índices de qualidade de vida, infraestrutura urbana e planejamento. No entanto, por trás da imagem de capital exemplar, a cidade esconde uma crescente desigualdade social e habitacional, em que a geografia urbana atua como divisor entre o acesso a oportunidades e a vulnerabilidade socioeconômica. 

A análise desse cenário passa pelo olhar acadêmico do Grupo de Estudos e Mapeamento em Economia Ecológica (Gemaeco) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que tem se dedicado a traçar este panorama com o projeto Mapeamento das Desigualdades na Região de Curitiba, em parceria com organização sem fins lucrativos Kurytiba Metropole. Segundo Junior Garcia, professor do Departamento de Economia da UFPR e coordenador do Gemaeco, a desigualdade em Curitiba e Região Metropolitana vai além da disparidade de renda, abrangendo também a educação, trabalho e acesso a serviços públicos. 

Segundo o professor, a pesquisa busca olhar a desigualdade sob uma perspectiva multidimensional. “Normalmente, quando você encontra dados sobre desigualdade, eles estão concentrados na desigualdade econômica. Você olha a desigualdade de renda, rendimentos, patrimônio. Você não vê desigualdades em outras perspectivas, por exemplo, desigualdade na educação, na alimentação, no trabalho, e assim por diante”, afirma ele. 

O mapeamento do grupo demonstra que a segregação espacial é uma consequência direta dessa acumulação de disparidades. Garcia critica a “falta de ações efetivas do poder público” que permite a formação das zonas de privilégio e de carência. 

Recentemente, a estudante universitária Nahara Meira se mudou de um bairro periférico para o centro da capital paranaense e analisa o impacto dessa desigualdade. “As diferenças estão escancaradas em todos os lugares, tem pessoas dormindo na calçada da rua onde eu moro, dormem em frente a prédios enormes, tem trabalhadores exaustos lotando os ônibus, e enquanto isso outros passam de carro sem nem perceber o que acontece ao redor. São mundos tão opostos que torna impossível ignorar o abismo social que estrutura a cidade.”  E prossegue dizendo: “viver aqui me fez repensar o que é privilégio, quem pode ocupar determinados espaços e quem é sempre empurrado para fora deles. Percebo que o acesso a cidade ainda é um privilégio de poucos.” 

A Pressão do Mercado Imobiliário e o Deslocamento

A moradia na capital paranaense é um fator central na dinâmica da desigualdade. Curitiba se posiciona entre as cidades brasileiras com o metro quadrado mais caro. De acordo com o Índice FipeZAP, que mede preços de imóveis residenciais e comerciais, a variação dos valores de imóveis residenciais acompanha uma tendência de alta que torna o sonho da casa própria, ou mesmo do aluguel digno, inalcançável para grande parte da população.  

Dados compilados pela mesma fonte confirmam a escalada nos valores, solidificando o mercado imobiliário como um catalisador da exclusão. Em 2024, o valor médio do metro quadrado de Curitiba ficou em R$ 10.703/m². A alta no custo de vida empurra famílias para áreas onde os serviços são precários e o tempo de deslocamento é maior. 

O professor Garcia aponta que a política urbana em Curitiba “empurrou todas as pessoas de classe média baixa e baixa para a periferia”. Ele resgata um dos principais achados do estudo: “As menores rendas estão nos bairros e nos municípios periféricos de Curitiba. (…) Essas pessoas moram em lugares mais baratos porque elas foram expulsas [das regiões centrais], porque morar no centro, morar em Curitiba, é caríssimo. A moradia é caríssima.” 

Em sua mudança, Nahara Meira optou por reorganizar sua vida financeira visando uma otimização de tempo, mas ainda assim o orçamento está pesando. “Estou controlando melhor os gastos, cortando alguns “luxos” e pensando duas vezes antes de fazer qualquer compra, mesmo que as mais básicas. As despesas com aluguel, alimentação, tudo num geral são mais altas. Confesso que é algo que me deixa um pouco ansiosa, porque parece que eu estou sempre fazendo conta para ver se o dinheiro vai dar até o fim do mês.” Analisa a estudante. 

O Contraste entre os Bairros

A segregação é confirmada por estudos sobre a estrutura socioeconômica local. A pesquisa “Vulnerabilidade Socioeconômica dos Bairros de Curitiba” de Silvano Daniel Miloca e Alexandre Reiss Graeml, detalha como a vulnerabilidade não está distribuída de forma homogênea. O estudo aponta para uma concentração de fragilidade em bairros periféricos, que carecem de investimentos em infraestrutura e acesso à renda. 

Segundo o coordenador do Gemaeco, a desigualdade de Curitiba se expressa visualmente no seu padrão espacial. “Curitiba é uma cidade que concentra a parcela da população da região que apresenta os maiores rendimentos. E os municípios vizinhos acabam abrigando as pessoas com menores rendas e maior vulnerabilidade social,” explica ele. 

O mercado de locação reflete essa realidade. Enquanto há a explosão de preços em bairros nobres, com valores que chegam a ser o triplo da média, as áreas onde o aluguel, embora nominalmente mais baixo, consome uma parcela desproporcionalmente maior da renda familiar. 

Preços de Aluguel em Curitiba em 2025. Infográfico: Fernanda Gomes de Siqueira

A disparidade de preços pode ser visualizada no mapa a seguir, que cruza o valor médio dos imóveis em diferentes bairros de Curitiba, mostrando visualmente o isolamento econômico das regiões mais ricas. 

Valor médio dos imóveis no terceiro trimestre de 2025 
Mapa: Matheus Neme 

A Demanda Habitacional  

O déficit habitacional é um problema estrutural que exige intervenção de larga escala. O Plano Estadual de Habitação de Interesse Social do Paraná (PEHIS-PR), desenvolvido pela Companhia de Habitação do Paraná (COHAPAR), revela o cenário das necessidades habitacionais do estado, incluindo Curitiba e Região Metropolitana. Os dados do PEHIS-PR sublinham que a demanda por moradia popular é crítica, indicando não apenas a falta de domicílios, mas também a inadequação e a precariedade das habitações existentes, que afetam a saúde e a qualidade de vida de milhares de famílias. 

O Professor Junior Garcia pontua uma falha crucial nas políticas municipais: a ausência de instrumentos que poderiam mitigar a desigualdade na distribuição e uso da terra urbana. Iniciativas como o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) Progressivo no Tempo. Sem essa ferramenta, que visa penalizar, via aumento gradual do imposto, imóveis urbanos não utilizados ou subutilizados, grandes proprietários mantêm o poder de controlar o mercado imobiliário.  

Como a renda vinda de aluguel não é essencial, a estratégia dos proprietários é manter imóveis fechados — artificialmente reduzindo a oferta de unidades disponíveis, pressionando os preços dos aluguéis para cima. O economista ainda destaca que essa dinâmica gera uma “transferência de renda” e os mais afetados são aqueles que dependem de aluguel: os empreendedores que precisam de espaços comerciais e populações de baixa renda sem moradia própria.

O Paradoxo de Curitiba

O professor reitera que o mero crescimento econômico não é suficiente para enfrentar o problema. Curitiba, ao adotar uma “política exclusiva”, acabou criando um problema para si mesma. Ele aponta o paradoxo da capital: “Curitiba tem o maior produto da região, mas ao mesmo tempo é a cidade mais desigual. Ou seja, quer dizer que o crescimento econômico não é suficiente para reduzir a desigualdade. Nós precisamos de outros mecanismos”. É preciso haver políticas urbanas de inclusão, com foco em ações que promovam a descentralização de oportunidades e um olhar para o zoneamento urbano. 

Como alguém que está vivenciando este contraste, Nahara tem uma visão semelhante à do professor. “O poder público poderia agir de forma mais equilibrada, investindo nas periferias com o mesmo cuidado que investe nas áreas centrais. Garantindo acesso digno a saúde, educação, lazer e principalmente ouvir os moradores desses bairros. Eu acho que a cidade só vai ser justa de verdade, quando as pessoas deixarem de ser vistas apenas como um CPF que movimenta a economia. Porque quem vive em periferia é enxergado apenas como mão de obra barata, alguém que serve para manter o funcionamento da cidade, mas que não é valorizado como ser humano.”  A estudante ainda afirma: “as grandes empresas e até as políticas públicas priorizam o lucro e não o bem-estar das pessoas, é como se a cidade estivesse dividida entre quem tem o direito de usufruir dela e quem só sustenta isso.” 

Curitiba, portanto, precisa urgentemente converter o conhecimento técnico em política pública tangível. Caso contrário, a crescente valorização imobiliária apenas reforçará o abismo social. A solução exige uma ação coordenada das autoridades políticas que foque, prioritariamente, na redução das desigualdades e na mitigação da vulnerabilidade social nas periferias metropolitanas de Curitiba. 

Centro de Curitiba. Foto: Maria Flávia Ferreira

Reportagem: Fernanda Gomes de Siqueira, Francielle Lacerda, João Marcelo Simões, Leticia Negrello, Maria Flávia Ferreira e Matheus Neme.