Quantas vezes na semana você leva o lixo para fora? Quantas vezes ao dia utiliza um copo ou garrafa plástica? E uma embalagem descartável?
Reportagem: Ana Livia Barboza, Camila Calaudiano e Vitória Smarci
Um quilo de lixo por dia: essa é a média de Resíduos Sólidos Urbanos (RSU) produzidos por cada brasileiro em apenas 24 horas. Segundo a Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente (Abrema), o Brasil gerou, em 2023, cerca de 81 milhões de toneladas de lixo, o equivalente a 382 quilos por habitante ao ano.
Mesmo com esse volume colossal, menos de 10% dos resíduos são reciclados ou reaproveitados. O restante segue para aterros sanitários, lixões a céu aberto ou se perde no meio ambiente em rios, terrenos baldios e mares.
Os RSU são materiais descartados de diversas atividades humanas e da natureza, que se apresentam no estado sólido ou semissólido, podendo também ser líquidos ou gasosos. Entre eles estão restos de alimentos, papéis, plásticos, metais e entulhos.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010) estabelece diretrizes para reduzir e gerenciar esse descarte, obrigando municípios e empresas a adotarem planos de reciclagem e reaproveitamento. Na prática, porém, o que se vê é uma gestão desigual e fragmentada, sem estrutura pública suficiente para dar conta da quantidade de lixo que o país produz.
O Brasil ocupa o 4º lugar no ranking mundial de produção de lixo plástico, um dos materiais mais poluentes, que pode levar de 20 a 600 anos para se decompor. Ao mesmo tempo, é um dos países que menos recicla: apenas 4 a 8% dos resíduos retornam à cadeia produtiva, segundo o Panorama dos Resíduos Sólidos 2024, da Abrema.
E a maior parte do que se recicla é feita através das mãos dos catadores e catadoras de materiais recicláveis. De acordo com o Atlas Nacional da Reciclagem (2022), nove em cada dez quilos de embalagens recicladas chegam à indústria por meio desses trabalhadores.
Enquanto a média nacional não chega a 10%, Curitiba recicla 22% dos Resíduos Sólidos Urbanos desde 2019, sendo considerada uma das capitais que mais recicla no país. Mas, por trás dessa taxa, está o trabalho invisível dos catadores, em sua maioria informais.
Com seus 1,7 milhão de habitantes, Curitiba produz cerca de 1.600 toneladas de resíduos orgânicos e recicláveis por dia, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Reciclagem de Pneus Inservíveis (Abraerpi). Somando 576 toneladas por ano.
Vila Torres — Centro de reciclagem não reconhecido
Às margens do Rio Belém, um lugar que a cidade não quer ver ou lembrar. Atrás de muros e avenidas, uma vila com cerca de 9 mil habitantes, vivendo às margens de uma Curitiba-modelo que rejeita tudo aquilo que não é digno de ser visto ou mostrado. Originada de uma ocupação popular, a Vila das Torres, antes conhecida como “Vila do Pinto” e “Vila Capanema”, passou por uma reurbanização em meados de 1970, mas parte da ocupação permaneceu.
Localizada entre os bairros Rebouças e Jardim Botânico — cartão postal de Curitiba — a vila é uma das regiões mais visíveis e, ao mesmo tempo, mais invisibilizadas da capital paranaense. Estima-se que cerca de 30% de seus moradores vivem da coleta de papel, plástico, alumínio e tudo o que a cidade joga fora. O lixo, ali, tem outro significado, o do trabalho, renda e dignidade.
A partir dos anos 2000, com o fortalecimento das cooperativas e programas municipais como o Câmbio Verde (1989) e o Ecocidadão (2007), a Vila Torres assumiu um papel central na política de reciclagem curitibana.
Claudete de Almeida é moradora da vila e trabalha com reciclagem há 15 anos, sete deles vinculada ao Ecocidadão. Ela é vice-presidente da cooperativa Recitorres, localizada na Vila Torres e, junto ao colega Leandro, administra um barracão onde separa, prensa e vende materiais recicláveis recolhidos pelos caminhões da prefeitura. Apesar da importância do trabalho, Claudete admite que ainda enfrenta muitos desafios no dia a dia e a falta de valorização da profissão.
“Tem muito preconceito com as pessoas que trabalham com reciclagem, eles falam: “Ah, trabalha com lixo, o lixo é sujo”. Mas a gente faz um trabalho muito importante para a natureza, que é limpar a cidade, reciclar. Se não fossemos nós fazendo esse trabalho, ia tudo para o aterro, onde prejudicaria muito o nosso meio-ambiente”, explica Claudete.
Roselaine Ferreira, coordenadora estadual do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), faz parte do programa Conexão Cidadã, que oferece apoio gratuito a catadores autônomos por meio de atendimento social, orientação jurídica, atualização de documentos e encaminhamento para serviços públicos. Dentro do programa, uma consulta com catadores do Vila Torres elencou as demandas mais urgentes.
“Entre as principais reivindicações estão a ampliação dos grupos do projeto Eco Cidadão, a produção de documentação, o acesso a programas sociais e a melhoria das condições de trabalho, já que, sem acesso à aposentadoria, sem garantia de EPIs e sem condições mínimas de saúde no trabalho, esses trabalhadores tornam-se ainda mais vulneráveis. Além disso, há o pedido por uma remuneração mais justa pelo material coletado, com preços que cubram os custos de transporte, separação e armazenagem”, destaca Roselaine.
Atualmente em Curitiba, são cerca de mil catadores registrados e 50 associações credenciadas pelo Ecocidadão, localizadas em diferentes bairros da cidade. Mas esse número é apenas a ponta do iceberg. Segundo Leila Zem, diretora de Educação Ambiental da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e coordenadora do Ecocidadão, o total de trabalhadores é muito maior, e boa parte deles residem na Vila Torres.
“A gente não tem levantamento formal, mas o Movimento Nacional de Catadores estima que Curitiba tenha mais de 10 mil catadores. Eu acredito que muito mais do que isso, só no Ecocidadão são quase mil. Então diria que temos entre 20 e 30 mil catadores na cidade”, afirma Leila.
As mulheres são maioria nesse ramo: 56% dos trabalhadores e 61% das diretorias das organizações, segundo o Atlas Nacional da Reciclagem. “A maioria são mães solteiras, [os barracões] são próximos de colégios, de creches. Muitas das vezes [as mulheres] não tem ajuda do parceiro. Também não conseguem trabalhar numa empresa porque não tem essa flexibilidade”, explica Leandro da Cruz, do Recitorres. O trabalho é árduo, invisível e pouco valorizado — ainda que seja essencial para que Curitiba mantenha o título de cidade com uma das maiores taxas de reciclagem do país.
“O catador é um agente ambiental, um profissional que cuida da cidade e do planeta. Falta só que todos reconheçam o que a gente já sabe na prática: sem o catador, não existe reciclagem de verdade”, destaca Roselaine.
Mas se apenas 22% das 576 toneladas de lixo recicláveis são reaproveitadas, para onde vão as outras 449 toneladas restantes?
Caminhos do Lixo
O percurso do lixo começa ao sair de casa e pode terminar em lugares distintos, desde uma composteira, a aterros sanitários, mares e rios.
“Da forma como está, a conta não fecha: o que se produz é muito e o que se recicla é muito pouco. Isso gera um passivo ambiental gigantesco, com poluição dos ecossistemas, ilhas de lixo no Pacífico, vida animal sofrendo e toda a conexão com a crise climática”, afirma Flávia Sotto Maior, advogada, ativista e cofundadora do movimento Paraná Lixo Zero.
Luiz Carlos Lopes é motorista na empresa CAVO, responsável por transportar o lixo de Curitiba até o aterro sanitário Estre, em Fazenda Rio Grande, região metropolitana da cidade. Ele percorre diariamente dezenas de quilômetros levando toneladas de resíduos — que chegam no aterro não apenas da capital, mas também de outros 25 municípios que integram o Consórcio Intermunicipal para Gestão dos Resíduos Sólidos Urbanos (Conresol).

A cidade adota um modelo de terceirização da gestão de resíduos. A empresa CAVO coleta resíduos orgânicos e recicláveis, os orgânicos vão para o aterro sanitário de Fazenda Rio Grande e os recicláveis são direcionados ás cooperativas e associações vinculadas ao programa Ecocidadão, criado para fortalecer a coleta e a separação de resíduos.
O aterro Estre, recebe diariamente 2 mil e oitocentas toneladas de resíduos, e esteve recentemente em um entrave judicial com o Ibama e a Justiça Federal para o aumento da vida útil do local, que acabaria em março desse ano.
Após meses do impasse, o órgão de proteção ambiental autorizou a derrubada de mais 10 hectares de mata nativa para extensão da vida útil do aterro em seis anos. O aterro sanitário, apesar de ser uma solução mais adequada do que o lixão a céu aberto, ainda é nocivo ao meio ambiente. Mesmo sendo uma engenharia licenciada e monitorada, os aterros sanitários têm vida curta, de cerca de 20 anos e, mesmo depois de desativados, continuam produzindo gases e chorume.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos também determina que os municípios realizem a compostagem, ou seja, tudo que for orgânico — restos de comida, adubo usado, folhas, resíduos verdes — tem que virar adubo e voltar para o solo por meio da compostagem. Quando não compostado, esse resíduo vai para o aterro sanitário e contribui para a emissão do metano, um dos gases do efeito estufa, responsáveis pelo superaquecimento do planeta.
“A média hoje é de 2 a 3% de todo o resíduo orgânico no Brasil que vai para compostagem — ou seja, bem pouco”, afirma Flávia.
Ela também explica que muitos materiais que poderiam ser reciclados não são por conta do preço, o valor no mercado não cobre o custo da reciclagem, e se não tem valor de mercado não tem como vender. Além disso, há várias embalagens que exigem alta tecnologia para reciclar, e que não se encontra a fácil disposição. E nem deveriam ser produzidas.
“Uma grande questão é incentivar embalagens feitas de materiais orgânicos, de plantas, embalagens compostáveis que rapidamente virem adubo no solo, e jamais utilizar embalagens derivadas de petróleo. […] O plástico leva centenas de anos para se degradar, e quando se degrada vira microplástico. Esse microplástico é ingerido, está no ar, na corrente sanguínea das pessoas, na placenta, nos espermatozoides… Ele se tornou um grande problema e um ponto central da crise ambiental que estamos vivendo”.
Flávia Sotto defende que as cidades adotem de fato o conceito Lixo Zero, que prioriza reduzir, reutilizar e reciclar resíduos, sem depender de incineração ou aterramento:
“O que precisamos é de uma mudança estrutural da sociedade, principalmente na produção e distribuição de bens de consumo e alimentos, para que as embalagens mudem”.






