Detentos relatam maus tratos e desconhecimento do próprio processo jurídico no Relatório de Vistoria ao Complexo Médico Penal do Paraná. Tampouco sabem informar sobre o tratamento de saúde a que estão submetidos na unidade. As consultas psiquiátricas, das quais os apenados dependem para o exame de cessação de periculosidade e progressão de regime, foram registradas como raras e insuficientes, segundo os documentos da Defensora Pública do Paraná. As condições do local e experiências se repetem desde 2021.  

“A unidade não possui condições estruturais nem recursos humanos suficientes para operar dentro da legalidade”

Relatório de Vistoria de 2024, Defensoria Pública do Paraná 
Não há camas suficientes para todos os detentos; alguns dormem em colchões. Foto: Relatório de Vistoria da Defensoria Pública do Paraná

O que é o CMP? 

O Complexo Médico Penal do Paraná (CMP) localiza-se no município de Pinhais, região metropolitana de Curitiba, no bairro Canguiri. Inaugurado em 1969, seu nome inicial era Manicômio Judiciário, sendo alterado em 1993 para o atual. O local é destinado a pessoas privadas de liberdade (PPLs), tanto condenadas quanto presas provisoriamente, em tratamento de saúde, com prerrogativas especiais previstas na legislação ou condenadas ao cumprimento de medida de segurança (MS). A penitenciária recebe também pessoas portadoras de deficiência e mulheres grávidas. 

Segundo o relatório deste ano, o Complexo tem capacidade para 537 detentos, mas custodia 659, ultrapassando a taxa de lotação aproximadamente em 22%. Para a alocação dos detentos, não há distinção quanto à natureza do delito, ou à sentença, isto é, se a PPL cumpre uma ordem provisória ou já foi sentenciada. Mulheres gestantes e pessoas LGBTQIA + encontram-se em uma ala específica, assim como homens custodiados em condição asilar e cadeirantes. Pessoas cumprindo medidas de segurança (MS), seja por internação ou tratamento ambulatorial, estão distribuídas na maioria das galerias.  

Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN) de dezembro de 2023, o Paraná possui a segunda maior população prisional cumprindo Medida de Segurança (MS) por internação do país, ficando atrás somente do estado de São Paulo. A população prisional da unidade é composta atualmente por 118 idosos, seis gestantes, dois estrangeiros e quatro pessoas do público LGBTQIAP+.  

De acordo com o censo dos Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (ECTPs) de 2022, a maioria dos detentos em MS são caracterizados como homens de 25 a 44 anos, que possuem ensino fundamental incompleto e trabalham na agropecuária ou em serviços comerciais e industriais. O diagnóstico principal da população em MS é esquizofrenia e as infrações penais principais são crimes contra a vida, contra o patrimônio, e contra dignidade sexual.  

Novo manicômio judiciário: precariedade da unidade revela negligência do Estado 

Quanto aos problemas físicos, foi relatado presença de ratos nas celas, além do vestuário e alimentação avaliados como insuficientes. Houve a entrega de marmitas estragadas por dois ou três dias, sem a realização de troca, como afirmou a Defensoria. A unidade não possui laudo técnico do Corpo de Bombeiros e não foi informado à Defensoria se recebe visita de vistoria da Defesa Civil. 

Nos três documentos anteriores, de 2021 até 2023, foi relatado mofo nas paredes, água fria para banhos, problemas de infiltração, fiações elétricas expostas, janelas quebradas, pouca entrada de luz solar, iluminação precária, infestações de mosquitos e pernilongos. Foi registrado, no relatório de 2023, celas completamente escuras, inclusive onde se encontravam pessoas em condição asilar. O Complexo tem operado ainda com um número insuficiente de camas, alguns detentos dormem em colchão – a maioria em más condições de uso. 

Foram registrados exames e consultas em atraso, segundo relatórios da Defensoria. Foto: Relatório de Vistoria da Defensoria Pública do Paraná

O estado do Complexo Médico Penal foi definido, no relatório de vistoria, como “visivelmente inabitável”. “A unidade não possui condições estruturais nem recursos humanos suficientes para operar dentro da legalidade”, afirma o documento. A estrutura da unidade “contraria de maneira veemente as normativas nacionais e internacionais”, segundo relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) de 2022. 

A reportagem entrou em contato com o Departamento de Polícia Penal do Estado do Paraná, e com a administração e a diretoria do Complexo Médico Penal. Porém, até o fechamento desta matéria, não obteve retorno após pedido de entrevista. 

Medida de Segurança: o que a lei prevê? 

O Código Penal considera a medida um tratamento compulsório para atos que configuram crimes cometidos por pessoas que possuem doenças ou problemas com saúde mental (chamadas periculosidades). Os agentes não são vítimas de culpabilidade, conforme prevê o Art. 26 da Lei nº 2.848/1940: “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” 

Os custodiados por MS, mediante perícia psiquiátrica, dependem unicamente do exame de cessação de periculosidade, o qual determina se o detento possui condições mentais para a desinternação ou liberação da condicional. O exame previsto na lei, deveria acontecer ano a ano, segundo o Art. 97 da Lei nº 7.209/1984, mas foi relatado, nos documentos, atraso e adiamento de sua realização, principalmente em 2023.  

Perspectiva de futuro: fiscalização do tratamento 

Dia 15 de fevereiro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário. A Resolução de Nº 487/23 prevê, nos manicômios judiciais, a revisão e fiscalização do tratamento de saúde aos custodiados.  

A norma pretende a “vedação de métodos de contenção física, mecânica ou farmacológica desproporcional ou prolongada, excessiva medicalização, impedimento de acesso a tratamento ou medicação, isolamento compulsório, alojamento em ambiente impróprio e eletroconvulsoterapia em desacordo com os protocolos médicos e as normativas de direitos humanos”. Por meio de equipes multidisciplinares de redes de atenção psicossocial, o documento estabelece o fim do tratamento involuntário de pessoas em conflito com a lei. “Tratamento em benefício à saúde, com vistas ao suporte e reabilitação psicossocial por meio da inclusão social”, prevê a resolução. 

“Tratamento em benefício à saúde, com vistas ao suporte e reabilitação psicossocial por meio da inclusão social”

Resolução Nº 487/23 

Resolução reforça Política Antimanicomial no âmbito jurídico brasileiro. Foto: Captura de tela da Resolução nº 487/23

Sofrimento psíquico e novas formas de tratamento antimanicomial 

Para o psiquiatra Deivisson Vieira, a própria legislação e tratamento constitucional, ainda que fosse prestado, impossibilita qualquer perspectiva de melhora ou reinserção social. Sobre a resolução, afirma ser “bastante atrasada em comparação às pessoas que não estão em conflito com a lei”. Vieira afirma que a lei “cobra a justiça de um jeito atrasado”. 

“A periculosidade é uma ficção técnica”

Deivisson Vieira, psiquiatra e especialista em Saúde Coletiva 

O especialista defende que a saída é a “internação domiciliar, criação de estratégias comunitárias, fortalecimento da rede de apoio e redução do estigma. Pesquisas mostram que não é o diagnóstico determinista que diz se uma pessoa é perigosa ou não, mas são os fatores do seu entorno”. Para ele, a periculosidade é atribuição fora de contexto e deslocada: “É uma ficção técnica. É como se fosse um sintoma alheio ao contexto em que a pessoa vive. A pessoa, se está trancafiada, vai se comportar diferente do que ela se comportaria se estivesse em um campo”, analisa.  

Vieira explica ainda o aspecto político da psiquiatria. “O diagnóstico de algum transtorno mental por si só não determina se uma pessoa é violenta ou não. Este tipo de premissa em que um diagnóstico, uma raça, uma cor ou uma característica do ser humano, cria uma tipologia que define se esse ser humano é violento ou não”. 

Edição: Luiza Yasumoto