
Rosana é o nome fictício de uma professora da rede estadual do Paraná com mais de 30 anos de experiência na educação básica. Hoje lecionando apenas para o ensino médio, ela testemunhou diversos casos de assédio. Um deles, ocorrido há dois anos em uma disciplina de “Projeto de Vida”, expõe a gravidade da situação.
“Um professor começou muito descolado, bacana. Só que ele exagerava nos exemplos”, conta. Rosana, que por lecionar biologia frequentemente aborda a sexualidade de forma pedagógica, notou a diferença. “As alunas percebem que é diferente”.
A situação escalou durante uma atividade em sala. “[Ele] colocou na sala de aula que era para a gente imaginar um objeto que a gente se identificasse e relatasse o porquê. E daí ele deu o exemplo que ele gostaria de ser uma luva cirúrgica, porque daí ele poderia ficar ‘colocando o dedo na vagina das meninas’ e ‘no ânus dos pias’ [meninos]”.
As alunas, chocadas, levaram o caso à coordenação. “Esse professor foi chamado e foi trocado. No outro dia ele já não apareceu na escola e veio um outro substituto”. Este caso teve uma resolução administrativa, mas Rosana destaca que essa não é a regra.
813 Processos em 31 Meses
O caso descrito por Rosana é um entre centenas que chegam aos canais formais. Um levantamento inédito realizado pela equipe de produção desta reportagem, baseado na análise de todos os Processos Administrativos Disciplinares (PADs) e Sindicâncias — processos administrativos internos e mais simplificados para casos de menor gravidade — abertos na Secretaria de Estado da Educação do Paraná (Seed) por assédio sexual, revela a dimensão do problema que é oficialmente reconhecido.
Entre 1º de janeiro de 2023 e 31 de agosto de 2025, foram instaurados 813 processos contra servidores por essa acusação.
Os números anuais mostram uma alta concentração em 2023, que pode refletir um represamento de denúncias pós-pandemia ou uma mudança nos métodos de registro:
- 2023: 430 casos de assédio sexual em processo aberto
- 2024: 245 casos de assédio sexual em processo aberto
- 2025 (até agosto): 138 casos de assédio sexual em processo aberto
Estes 813 processos se destacam em um universo de, segundo dados da própria Seed, mais de 70 mil profissionais da educação, entre servidores efetivos e temporários (PSS).
O destino incerto das denúncias
A abertura de um Processo Administrativo Disciplinar é o primeiro passo, mas não garante punição. A investigação pode levar a seis resultados principais, que variam da inocência à punição máxima:
- Arquivamento: O encerramento na fase inicial (Sindicância) por falta de indícios mínimos de autoria ou prova.
- Absolvição: O servidor é declarado inocente no julgamento final do PAD.
- Repreensão / Advertência: Penalidades leves, registradas na ficha funcional.
- Suspensão: Afastamento temporário (até 90 dias) sem remuneração.
- Rescisão Contratual: Demissão “por justa causa” de professores temporários (PSS).
- Demissão: A penalidade máxima para servidores concursados, com desligamento permanente.
A análise dos processos concluídos no período (excluindo os que ainda estão em andamento) mostra que o caminho para a punição é árduo. A soma de arquivamentos e absolvições supera com frequência as demissões e rescisões contratuais.
“É abafado”
Para Rosana, os 813 processos não refletem a realidade. “É abafado”, ela afirma. “Eu não sei que nível de violência que precisa para que algo aconteça”.
Ela critica a falta de ação proativa das gestões. “Poderia, na minha opinião, fazer trabalhos pedagógicos na escola. A pedagoga poderia falar: ‘vamos falar muito de assédio’. A gente faz tudo por conta. Porque não existe esse trabalho pedagógico.”
O motivo desse silêncio, segundo ela, é duplo: “A questão sexual na escola, ela é cheia de melindres, porque existe muito pensamento conservador dentro da escola e medo de se indispor com os pais. Eles [a direção] não querem que os pais fiquem sabendo.” Mas o problema é estrutural, a pressão do sistema por uma ‘vitrine’ de bons resultados cria um ambiente onde expor falhas graves é desencorajado.
A escola, que deveria ser um local seguro, torna-se ameaçadora. Quando uma denúncia ganha força, a solução da Secretaria, segundo ela, pode piorar a situação. “Se digamos que uma aluna faz um B.O. [Boletim de Ocorrência] e os pais vão lá e fazem um barraco, aí a Seed sugere que vá lá, faça um debate com alguém da Secretaria de Educação, que eu já acho errado. […] Constrange mais, sabe? Parece um paredão.”
Apesar da existência da Lei Federal 14.540/23, que instituiu o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual em escolas e órgãos públicos, sua aplicação é questionável. Segundo fontes anônimas da própria Seed, o projeto não foi implantado de forma efetiva no Paraná sob a justificativa de que o formato sugerido pela lei se encaixa para contextos empresariais e não escolares, apesar da inclusão do ambiente na descrição.
Procurada, a Seed não quis se pronunciar sobre o funcionamento das denúncias, e como os casos de assédio são recebidos pela instituição. Em nota, limitou-se a dizer que “A abertura e a instauração de Processos Administrativos Disciplinares (PADs) seguem a legislação vigente, conforme a Lei Estadual n° 20.656/2021.”
Esconder a sujeira não faz desaparecer
Rosana relata um segundo caso, ocorrido este ano com um professor de sociologia e alunas de três turmas diferentes do segundo ano. “Ele passava a mão na cintura, pegava na cintura das meninas. Ele passava a mão no rosto delas. No cabelo, ele tocava demais nelas”, descreve. O assédio se estendeu ao ambiente digital: “Mandou mensagens por WhatsApp pra uma menina […] chamando de querida […] se insinuando pra ela.”
As alunas se uniram e denunciaram à direção. A resposta, novamente, foi o silenciamento. “Teve uma que queria fazer B.O., a direção abafou”, diz Rosana. Ela suspeita que a imagem da escola, recentemente adepta do modelo de gestão privada (Parceiros da Escola), foi um fator. A ordem é não ter problema. “É mais um professor saindo e a queimar a imagem da direção, da escola” que precisa se apresentar como impecável para o sistema.
O resultado foi desolador para as vítimas. “Só conversaram com o professor. Ele continua dando aula lá na sala e as meninas disseram que ele deu uma ‘maneirada’. […] Elas ficam com essa sensação que não dá nada.”
Quando a pressão é grande demais, a solução, segundo a professora, é a transferência, não a exoneração. “Eles recebem processo administrativo, investigam, mas são afastados. Teve um caso de um professor à noite […] que passava a mão na bunda de aluno, menino, menina. […] Ele foi transferido.” Ela conclui: “Se você for uma professora concursada, você não é exonerada. Eles transferem você de escola.”
A extinção do professor pensante
O silêncio sobre assédio, segundo Rosana, é um sintoma de uma política educacional que sufoca o debate humano. A gestão do governador Ratinho Junior, focada em métricas e plataformização, teria criado um ambiente de “autocensura”.
“Eu sou referência da sexualidade na escola”, diz Rosana, “mas eles fogem. Eles não gostam. A equipe pedagógica não gosta, a direção, ela não sabe como abordar. Ela tem medo.”
Ela critica as prioridades curriculares: “A escola está tão informatizada e tão focada em português e matemática. Cinco aulas de educação financeira, essa ‘perfumaria toda’, e menos aulas de biologia, filosofia, sociologia.”
A pressão por resultados e o uso de aulas prontas em plataformas digitais (como o RCO – Registro de Classe Online) minam o tempo para o diálogo. “Do Ratinho pra cá, teve muita plataformização. […] É cobrança para você cumprir aquilo e é óbvio que isso tem uma intenção: é não formar professor reflexivo. A gente não tem tempo para sentar, para fazer um debate, para analisar.”
Nesse contexto, o assédio é negligenciado. “Esse assédio sexual tem a ver com a ignorância, com essa falta de cuidado”, afirma. A própria formação continuada imposta pela Seed ignora o tema. Os professores são obrigados a fazer cursos para subir de nível na carreira, mas os temas são engessados.
“E não tem sexualidade nesses cursos. É biotecnologia, biologia, matemática, educação especial. […] Os professores fazem por obrigação, mas que não traz grandes resultados pra sala de aula.”
Com a pressão por metas em aplicativos e uma carga horária exaustiva, não sobra espaço para o essencial. “Nossos professores estão exauridos. Salas super lotadas. […] Que professor que vai ter vontade?”, questiona. É nesse sistema, focado em cumprir tabelas manter a ‘vitrine’ limpa e não em formar pessoas, que o assédio encontra terreno fértil para prosperar.
O que fazer
Pensando na conscientização de jovens, a equipe produziu um panfleto informativo, que será distribuido em escolas e pode ser acessado abaixo:




Equipe de produção: Alana Morzelli, Ana Clara Osinski, Alice Lima, Giuliano Carbonari e Isadora Kovalczuk
Texto: Alana Morzelli
Panfleto informativo: Giuliano Carbonari
Produção de vídeos para Youtube e Instagram: Alice Lima e Isadora Kovalczuk
Edição de vídeos para Youtube e Instagram: Isadora Kovalczuk
Infográfico: Ana Clara Osinski


